sábado, 15 de novembro de 2014

Caquinhos de preconceito



          Logo cedo o jornal conta a história de dois rapazes que se beijavam num metrô em São Paulo e acabaram espancados por quinze homens.
        Mais tarde, na escola, algumas alunas batem boca. Indago qual o motivo. Uma delas responde: “Fulana me chamou de sapatona”. Pergunto o que é sapatona e a outra diz: “machorra”. Continuo o questionamento até que a turma conclui: “é lésbica, professora”. Crianças de apenas dez anos que empregam um vocabulário depreciativo e preconceituoso com relação à opção sexual das pessoas.
         Não é o único preconceito que surge na escola. Na minha, há duas meninas lindas, irmãs e negras, que convivem com apelidos e xingamentos constantes, devido a cor da sua pele. Essa é uma atitude que podemos perceber até de figuras importantes e influentes, como no caso de Silvio Santos, que fez um comentário depreciativo sobre o cabelo de uma atriz negra em seu programa.
         Excluindo-se o fato ocorrido no metrô, ato covarde e bárbaro, geralmente justificado com comentários do tipo: “eles pediram, por que estavam se beijando daquela forma?”, os demais exemplos são “caquinhos de preconceito” que presenciamos diariamente.
          Dias antes, folheando uma revista local, vi as fotos de uma mulher alta, magra, cabelos muito lisos e sedosos, olhos lindos, mas aí algo parecia fora do contexto: um bigode. Era um rapaz, ou melhor, um travesti. Fiquei chocada, não pelo fato de alguém ser tão corajoso a ponto de “sair do armário” de forma tão escancarada, numa cidade do interior. Minha perplexidade veio quando percebi meu próprio preconceito.
         Em maior ou menor grau, todos temos preconceitos, pois somos humanos. Seria bom se pudéssemos juntar “os caquinhos de preconceito” para formar um grande espelho, no qual fôssemos capazes de visualizar nossas falhas, medos, inseguranças. Talvez esses sejam os fatores que levam alguns de nós à barbárie, a cometer atos insanos, violentos. Temos medo de ver, de enxergar as diferenças, porque talvez essas diferenças atinjam nossas convicções do certo e do errado, do bom e do mau (aquilo que costumamos denominar sistema de crenças).
          Paradoxo: ao mesmo tempo em que o ser humano é capaz de pousar um robô em um cometa, parece incapaz de conviver com semelhantes que ousam ser diferentes.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Ainda o bullying



        Um menino com problemas em casa, estranho, com dificuldades de relacionamento na escola. Uma situação tensa, em que os colegas ridicularizavam alguém frágil emocionalmente. Esse é o tema da música “Jeremy”, da banda norte-americana Pearl Jam, gravada em 1991, numa época em que falar sobre bullying não estava na moda. Eis um trecho da música e o vídeo:



“Me lembro claramente
Perseguindo o garoto
Parecia uma sacanagem inofensiva
Oh, mas nós libertamos um leão”

      O Jeremy da letra da música termina com a própria vida dentro da sala de aula. Já seria terrível se fosse apenas ficção, mas a história realmente aconteceu. 

   Um garoto de uma escola da cidade de Richardson (EUA), em 1988, descrito como um “introvertido”, suicidou-se na frente de seus 30 colegas de classe.

      Segundo a polícia, Jeremy Wade Delle, de 16 anos, que havia sido transferido de uma escola de Dallas, morreu na hora após puxar o gatilho de uma Magnun calibre 357 enfiada em sua boca, por volta das 9:45 da manhã. 

      Por ter perdido o horário da aula, sua professora de inglês do segundo ano pediu a Jeremy que fosse à secretaria pegar uma autorização de entrada por atraso. Ao invés disso, ele retornou a sala de aula com a arma.

      Anos depois, o vocalista do Pearl Jam, Eddie Vedder, criou a música Jeremy ao recordar da notícia que lera no jornal.
         
        Caso parecido aconteceu esse ano. Um menino de 12 anos, da Inglaterra, enforcou-se após não mais suportar as humilhações dos colegas de turma. Ele chegou a ser socorrido pela mãe, ficou uma semana no hospital, em coma. Durante esse período, os pais fotografaram o menino e postaram as imagens na internet. O objetivo deles era que os agressores do menino percebessem o que haviam provocado.

      Esses são dois casos que mostram o sofrimento extremo de crianças provocado por outras crianças (ou adolescentes). A dor é tão grande que elas preferem acabar com a própria vida e parar de sofrer. Sabemos que há ainda casos nos quais, como nos assassinatos em massa em escolas ao redor do mundo, mas principalmente nos EUA, os suicidas decidem matar antes de morrer. Nada justifica tal ato insano, mas se investigarmos a vida dos assassinos-suicidas descobriremos, quase sempre, um histórico de sofrimento, revolta e exclusão causados pelo bullying.
 
     O bullying, antes de ser uma “moda”, é  reflexo de uma sociedade portadora da ignorância social. São ignorantes sociais aqueles que excluem, rotulam, ridicularizam e segregam pessoas diferentes. São aqueles que não suportam que seu sistema de crenças e valores seja abalado. Homossexuais, negros, pobres, velhos, mendigos, são alvos frequentes dos ataques desses ignorantes. Ou então crianças cujo comportamento ou aparência não estão de acordo com o que é socialmente “desejável” e “aceitável”.    
    
     Sabemos que crenças e valores são moldados desde o nascimento no convívio familiar. Portanto, pais ignorantes sociais vão formar aquelas criaturas abomináveis que adoram praticar o bullying. É na família que podemos evitar casos como os dos dois garotos acima.



segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Professora de escola pública, com muito orgulho!






              Durante um bom tempo convivi com um sentimento de inferioridade e até vergonha devido à minha profissão: professora de escola pública. Constantemente, ao fazer compras nas lojas da cidade,  quando as vendedoras perguntavam qual era minha ocupação, ao responder notava olhares que denunciavam seus pensamentos: " professora, coitada!".  A figura do professor vem sendo constantemente desvalorizada e estigmatizada pela sociedade em geral. Parece que há um consenso de que só "vira" professor quem não teve capacidade ou oportunidade para conseguir algo melhor.
           Servem como exemplo alguns economistas de destaque na mídia. Parece que eles têm um prazer quase que sádico em apontar o professor (e sua eventual incompetência) como a causa maior da crise geral do sistema educacional brasileiro. Para tanto, esmiúçam os dados, estatísticas e porcentagens referentes à aprendizagem, alfabetização, aprovação, bem como as classificações dos alunos brasileiros em testes nacionais e internacionais. Esses mestres das finanças frequentemente afirmam que aumentar os salários dos educadores (ou seja, oferecer uma remuneração digna) é uma medida que não tem nenhum impacto na melhoria da aprendizagem dos alunos. Esses senhores desconhecem a realidade de muitos educadores que se vêem obrigados a complementar a renda mensal aventurando-se em atividades informais, como por exemplo, vendendo roupas e cosméticos, ou dando aulas particulares nos finais de semana. Ignoram que muitos de nós gostaríamos de ter condições financeiras e tempo para comprar e ler mais livros e revistas, estudar e aprender para melhor ensinar. No entanto, vivemos rotinas estressantes, correndo de uma escola para outra, corrigindo trabalhos e provas em casa, acumulando dívidas e fazendo mais um empréstimo para sair do vermelho.
            Mas os economistas não estão satisfeitos e sugerem ainda que a saída seria a meritocracia, a solução para afastar das salas de aula os ineficientes e incompetentes, a escória responsável pelo fracasso dos alunos. Acontece que onde os "mestres dos números" enxergam estatísticas e porcentagens, nós, educadores, enxergamos pessoas. Por exemplo, caso adotássemos a tal meritocracia , seria possível a seguinte situação: ao final do ano letivo, duas turmas de 3º ano do Ensino Fundamental são submetidas a testes de matemática. Os alunos da Fulana obtêm média 8, enquanto que os alunos da Sicrana atingem média 6. Quem vai ser promovida? A Fulana, visto que seus alunos tiveram um desempenho melhor. Não importa se a Sicrana conseguiu alfabetizar, ao longo do ano letivo, duas crianças que "patinavam" para aprender (algo que professores dos anos anteriores não teriam conseguido). Há resistência de muitos educadores em relação a esse sistema de avaliação: por mais que o professor seja competente, esforçado e responsável, sempre estará sujeito a injustiças.
            Portanto, o professor não pode ser visto como único e exclusivo vilão da história. Existem sim, como também há em muitas outras áreas e profissões, educadores relapsos, irresponsáveis e incompetentes. Quantos casos acontecem de médicos que cometem erros graves, resultando inclusive na morte de pacientes, quase que diariamente? Nem por isso identificamos os médicos como responsáveis pela precária situação da saúde pública no país. Não se pode julgar a maioria tendo como referência uma minoria.
          No entanto, como se não bastasse essa perseguição dos economistas, os professores sofrem também (e principalmente) dentro da escola.  Há uma crise generalizada de valores que atinge fortemente a relação professor-aluno. Crianças e jovens que não reconhecem o sentido da educação e a própria descaracterização da função social da escola são fatores que colocam o professor numa situação permanente de tensão. Problemas familiares, miséria, desemprego, as drogas, gravidez precoce, são exemplos de elementos que fazem parte do universo dos estudantes. Uma sala de aula com trinta alunos comporta trinta histórias diferentes (infelizmente, muitas delas são tristes, cruéis, chocantes). Anteriormente, eu acreditava que o professor competente, que prepara uma aula interessante e com objetivos claros, conseguia ensinar com eficiência. Hoje percebo que há momentos nos quais o professor, por mais que tente, invente, se esforce, não tem êxito. Nesses momentos a escola é obrigada a chamar os responsáveis pelos alunos para tentar reverter o quadro. E aí os pais dizem: "Dá um jeito nesse menino, que nós não podemos mais com a vida dele." Ou seja, além de ser o responsável pela aprendizagem dos educandos, o professor passa a ter outra função: educar, que é atribuição primordial e intransferível da família.
          O professor está sozinho na sala de aula e carrega um imenso peso nas costas: ensinar, educar, mediar conflitos... Especialmente em grandes cidades, professores são diariamente agredidos verbal e fisicamente (recente pesquisa, feita com mais de 100 mil professores e diretores de escola do segundo ciclo do ensino fundamental e do ensino médio, divulgou que o Brasil está no topo do ranking de violência contra os educadores).
          Além disso, os profissionais disputam a atenção das turmas com os celulares e tablets. Especialistas dizem que a solução está em utilizar a tecnologia nas aulas. Mas laboratórios de informática sucateados é o que nos oferecem, com internet que só funciona com “reza braba”. Precisamos alfabetizar todos os alunos até os oito anos de idade, mesmo quando as crianças demonstram dificuldades cognitivas importantes e não recebem apoio especializado (psicólogos, psicopedagogos, neurologistas, fonoaudiólogos). Especialistas, governantes e economistas não sabem o que é alfabetizar um aluno do 1º ano que nunca pegou um lápis na mão, que não teve acesso a nenhum livro durante a primeira infância, que espera com impaciência a hora do lanche para matar a fome do dia.
           Só quem é professor sabe o quanto é difícil o cotidiano da escola pública brasileira. São profissionais que, apesar das dificuldades, a despeito da desvalorização e humilhação quase que diárias, continuam trabalhando porque acreditam no que fazem e se importam com os alunos. Apesar dos ataques que sofremos, sabemos que não somos inferiores e nos recusamos a ser tachados de ineficientes ou incompetentes. Experimentamos a alegria de presenciar as crianças escrevendo suas primeiras palavras.  Exultamos quando os pequenos abrem um livro e sentem prazer ao ler.  Nos dias frios, tiramos os casacos do corpo para agasalhar os aluninhos que chegam à sala de aula tremendo. Subtraímos quantias preciosas do nosso exíguo salário, seja para comprar lápis e borracha e emprestar para os que não têm, seja para promover uma festinha de aniversário conjunta ou realizar uma comemoração no final do ano.  Fazemos isso porque somos educadores, trabalhamos com pessoas, não enxergamos apenas números. Ano passado alfabetizei um menino filho de pais analfabetos. Ensinei a ele mais do que a leitura e a escrita. Além de saber assinar seu nome e iniciar uma trajetória de vida diferente daquela dos pais, ele aprendeu a gostar dos livros. Nos dias em que não havia a hora da história (momento no qual leio um livro novo em voz alta para toda a turma) ele cobrava, com aquele olhar ansioso e cheio de expectativa: "Não vai ler livro hoje, profe?" É por ele, e por todos os alunos que virão, que continuo sendo professora. Agora não tenho vergonha. Pelo contrário, tenho apenas orgulho da minha profissão.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Uma pergunta dolorosa

            "Mãe, por que ninguém gosta de mim?"
           Essa foi a dolorosa pergunta que ouvi do meu filho hoje. Olhei bem no fundo daqueles imensos olhos azuis e senti um aperto no peito. Respondi com outra pergunta: "Quem não gosta de você?"
            "Na escola mãe, porque os colegas brigam comigo? Por que quando eu chego num grupo eles saem de perto e não me dão bola?"
            Sabe aquele momento em que você percebe algo que estava ali, há tanto tempo, escancarado, e tem a sensação de estar assistindo a um filme conhecido (ou recordando um pesadelo)?
          Meu primogênito é uma criança tímida, retraída, "na dele". Não se destaca no futebol, não tem celular nem acessa redes sociais, pois simplesmente essas são coisas que não o interessam. É  o típico aluno comportado, sempre elogiado pelos professores pela sua conduta. É incapaz de agredir alguém, de brigar ou discutir. Ou seja, uma criança vulnerável. No último ano tem se queixado bastante quando chega da escola: dores de cabeça, irritação, nervosismo. A cada dia que passa gosta menos da escola. Agora descubro que a turma de colegas, constituída praticamente de crianças que se conhecem e são "amigas" desde a pré-escola, está deliberadamente excluindo meu filho do convívio diário. Ele é rotulado de "nerd". Frequentemente chora ao relatar as dificuldades que passa no dia-a-dia escolar. 
            Como explicar para uma criança por que está sendo excluída, rotulada e humilhada? Como explicar algo que não tem justificativa?
           Os colegas que estão tendo essa atitude para com meu filho são de famílias bem informadas, nas quais presume-se que são repassados às crianças valores éticos e morais, como a solidariedade, a compreensão e a tolerância. Creio que alguns desses pais e mães já devem ter lido e se informado bastante sobre o bullying. Talvez alguns até tenham palestrado sobre o assunto. Gostaria de continuar acreditando nisso.
             No entanto, a situação que meu filho está vivenciando leva-me a pensar que a nossa sociedade está mesmo preocupada com seu próprio umbigo, corroída pelo consumismo, atingida por  pragas como o egocentrismo, individualismo e hedonismo que podemos perceber na avalanche de selfies diárias postadas nas redes sociais. O bullying é o berço dessa sociedade na qual aquele que é diferente, que não se encaixa, não está na moda, não fala a mesma língua, é execrado e banido. Não é apenas uma "onda" ou "modismo".  É algo extremamente cruel e real, que revela os monstrinhos que temos escondidos em nossos subconscientes. Monstrinhos da intolerância, da indiferença, da maldade. E que se revelam cada vez mais cedo.
             Infelizmente, grande parte dos pais só se dão conta do problema quando seus filhos estão do lado mais fraco. Dói na alma e dói na carne. Dói tanto que há casos de vítimas que  não suportam e tiram a própria vida. 
          Será que ainda ensinam na escola que os seres humanos são os únicos animais dotados de racionalidade?
            Se for o caso, está na hora de revermos esse conceito. Porque bullying não é algo racional. Não existe resposta racional para a dolorosa pergunta que ouvi hoje.

domingo, 17 de agosto de 2014

Entre a ilusão e a realidade




        Para uma criança de seis anos com pretensões artísticas uma simples encenação na escola torna-se um acontecimento. Ana queria ser atriz, portanto, no momento em que a professora escolhia a protagonista do teatro de final de ano, decidiu que, se não fosse ela a escolhida, o mundo acabaria. Devido à sua desinibição e ao fato que, sendo irmã e sobrinha de professoras da escola, atazanaria tanto a pobre mestra, caso outra coleguinha assumisse o papel, foi a indicada. A peça consistia na seguinte história: um pássaro, preso numa gaiola, muito triste; uma fada, que com sua varinha mágica, libertaria o animalzinho. E lá se foi a menina, Ana, ensaiando, dia após dia, sua fala, seus gestos, sua postura, a forma como manusearia a varinha e libertaria a ave, que sairia voando em busca de novos rumos. Em sua ilusão, arrasaria. Seria uma atuação incrível, mesmo durando menos de dois minutos.
       No tão esperado dia, a menina não cabia em si de tanta expectativa: vestido rosa, varinha "mágica" em punho, cabelo arrumado, maquiagem. Uma multidão (em sua visão de criança) assistia à apresentação. Mas, no momento exato, a professora resolve narrar a história, enquanto Ana faz toda a cena. Não houve “deixa”, pausa ou oportunidade para que a pequena aspirante à atriz pronunciasse sua fala exaustivamente treinada. E, mesmo que houvesse, ela nada diria. A presença de tantas pessoas ao seu redor a fez corar de vergonha. Sentiu até alívio quando a professora começou a falar ao microfone e não precisou abrir a boca. Todos os presentes compreenderam a pequena encenação. Ana, no entanto, descobriu que entre a ilusão e a realidade há uma diferença muito, muito grande. E sentiu um vazio imenso ao perceber que passara os últimos dias na expectativa pela ilusão. De ser especial, atuar, estar no centro das atenções. De ser protagonista. Então percebeu que o grande protagonista da cena que participara não era ela, mas sim o pássaro liberto. Esse poderia dali em diante ser protagonista da própria história. Seja na realidade ou na ilusão disso que chamamos de vida.
       Passados alguns anos, Ana desistiu de ser atriz. Não porque não tivesse talento. Não tinha mais coragem para lidar com algo tão complexo. E também porque sentiu, naquele dia, na escola, quando sua ilusão de ser especial foi diluída pelo choque da vergonha e da realidade, um vazio enorme. Talvez o mesmo vazio que um ator premiado, famoso e reconhecido tenha sentido antes de terminar com sua própria vida. Robin Willians teria deixado escrito em seu diário, pouco antes de cometer suicídio: “Oh, qual é o sentido disso tudo?”
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