quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A justiça invertida



 


No ano de 1992, 111 presos foram mortos durante uma rebelião na Casa de Detenção do Carandiru, na capital paulista. Desses 111, oitenta e nove aguardavam julgamento no regime carcerário, ou seja, não eram condenados. Passados 25 anos, o cenário não mudou muito: cerca de 40% dos presos no Brasil são provisórios, segundo levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) feito em 2016. São quase 250 mil presos provisórios. Um raio X dessa situação pode ser conferido no documentário Sem pena, de Eugênio Puppo. 


Existe uma máxima que diz que todos são inocentes, até que se prove o contrário. No entanto, não só no Brasil, mas principalmente por aqui, essa máxima parece estar invertida: ninguém é inocente até que prove o contrário. Há poucos dias, o reitor da UFSC,Luiz Carlos Cancellier de Olivo, de Santa Catarina, cometeu suicídio num shopping de Florianópolis. Ele foi preso  temporariamente pela Polícia Federal, numa operação que investiga o desvio de verbas em bolsas de educação à distância. Liberado, foi afastado do cargo. Mesmo não estando preso, deveria estar se sentindo julgado e condenado pela opinião pública e humilhado pela situação,preferindo tirar a própria vida.




É fato que grande parte da sociedade acredita que quem está preso, é porque errou, é bandido, mau. É a lógica do bandido bom é bandido morto, que justifica julgamentos antecipados, presunção de culpa e linchamentos. Que destrói a vida de muitos inocentes. No livro "Infâmia", a autora Ana Maria Machado nos leva a sentir na pele todo a angústia de um funcionário público acusado injustamente de corrupção e nos mostra como pode ser verdadeiro e cruel o ditado "criou fama, deite na cama". Um exemplo de que falsas histórias podem destruir a reputação e a vida de uma pessoa.



A justiça está cada vez mais invertida: inocentes são punidos e encarcerados sem provas, enquanto que os piores ladrões e bandidos, a despeito das fartas evidências e indícios, das gravações, dos helicópteros recheados de cocaína e malas repletas de dinheiro, continuam livres.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A ração e a pirâmide





Matheus ouvia atentamente a explicação da professora. Ela era muito inteligente. Estava explicando sobre uma tal pirâmide alimentar e ia colando imagens de alimentos no cartaz fixado no quadro. O estômago do menino roncou. Pelo relógio da sala, calculou que ainda faltava mais de uma hora para a merenda. Era o terceiro dia que comiam apenas arroz no almoço. A mãe precisou usar o dinheiro do feijão para comprar as fraldas de Lucas, seu irmão mais velho, cadeirante. 

- E as frutas, onde se encaixam? - a professora continuava sua aula. 

O ronco da barriga novamente. Matheus pensou como seria bom se pudesse repetir a merenda naquele dia. Talvez conseguisse enganar a funcionária e ela não marcaria sua mão com  a canetinha que indicava que já havia sido servido uma vez. Mas os colegas o denunciariam. 

A pirâmide estava quase completa. A imagem fez o menino lembrar daquele dia em que fora até o shopping do centro, caminhando por mais de quatro horas, sem a mãe saber, é claro. Aquele lugar parecia outro mundo. Sentou numa das mesas da praça de alimentação, observando as pessoas que iam embora e deixavam seus pratos com restos de comida. Catava as batatas fritas, restos de hambúrgueres e comia, ao mesmo tempo em que guardava uma parte numa sacola plástica. Para os irmãos. Mas um dos seguranças veio até ele e começou a arrastá-lo. Uma mulher o impediu. Ela discutiu por alguns momentos com o homem e disse que pagaria um lanche para o menino. Sentaram-se lado a lado. Ela perguntou onde ele morava. Ele contou sobre sua mãe, diarista, e os três irmãos. Sobre Lucas, que agora ficava o dia todo na escola e só voltava à noitinha. A mulher chamava-se Dora e tinha um cheiro quase tão bom quanto o da professora. Lucas devorou o BigMac e Dora perguntou se ele não comeria as batatas. 


- Vou levar para dividir com meus irmãos.
Ele gostaria de levar a Coca também, mas ela já havia aberto a latinha. O menino observou os olhos da mulher encherem de lágrimas.
- Espere um pouco - disse ela, dirigindo-se até o balcão do fast food. Voltou com uma sacola cheia.
- Aqui. Leve para os seus irmãos.


O menino voltou entusiasmado para casa, pensando que logo, logo, talvez na quinta série, deixaria de estudar e arranjaria um trabalho, e então talvez pudessem ir até o shopping de vez em quando e pedir seus lanches, todos juntos.

Naquela noite, todos encheram suas barrigas, sorrindo e conversando em volta da pequena mesa do barraco de dois cômodos. Apenas a mãe estava séria. Vestia uma camiseta da eleição passada, com a foto do prefeito sorrindo.
- Nunca mais saia sozinho de casa. É muito perigoso.
- Mas, mãe...
-Sem conversa. Não faça mais isso.

A pirâmide estava pronta. Então Matheus lembrou de um alimento que não saberia classificar. Não sabia se era carboidrato ou proteína.
- Professora, e o farelo?
- Como, Matheus?
- O farelo, aquele que o prefeito distribui - falou, entre os risinhos abafados de alguns colegas.
Era o farelo que ele comia, misturado com água, que até aliviava um pouco a dor de estômago causada pela fome, mas não era gostoso. Nem bonito.
- Ah, acho que sei - falou a professora, pensando no que responder. Teve vontade de dizer ao menino que o farelo estava em outra pirâmide, a pirâmide SOCIAL dos alimentos, na qual a lagosta do prefeito estaria bem na pontinha superior, e o tal farelo, que muitos chamavam de ração, estaria na base. Mas ao mesmo tempo imaginou o Kim Kataguiri e o Alexandre Frota entrando na sala com cartazes do Escola Sem Partido e acusando-a de esquerdopata.
-Na verdade, não sei onde o farelo se encaixa nessa pirâmide, mas vou pesquisar e depois conto para vocês.
Matheus admirava muito sua professora, pois havia poucas coisas que ela não sabia, e quando não sabia, não tinha vergonha de admitir. E sempre cumpria a promessa de pesquisar e trazer a resposta.
- Agora, cada um de vocês vai montar a sua pirâmide, desenhando os alimentos que costumam ingerir diariamente.
O menino olhou para o relógio. Quase hora de comer. Desenhou arroz, feijão e uma banana na sua folha. A professora questionou, quando viu:
- Você quer colocar mais alguma coisa, Matheus?
- Não professora, é isso mesmo que eu como.
- Mas, nenhuma fruta mais, você gosta de fruta?
- Eu gosto. E de iogurte. A mãe compra, uma vez por mês, um potinho pra cada filho. Eu faço um furinho no meu pote e vou tomando um pouquinho por dia. Às vezes, dura uma semana.
A professora foi até sua mesa e retirou um embrulho da bolsa.
- Olha, eu tenho essa maçã aqui. Pode ficar com ela, tem outra lá na sala dos professores.
- Obrigado professora.
Foram interrompidos pelo sinal.
Enquanto comia, Matheus ficou pensando como classificaria cada alimento do seu prato. Ele adorava comer e aprender.

domingo, 1 de outubro de 2017

Cinderela desconstruída





Eu era apenas mais uma adolescente desengonçada, que se achava muito feia e gorda. Ela era minha vizinha. Uns dois anos mais velha, longilínea, cintura finíssima, cabelos dourados e longos e a pele que bronzeava com facilidade. Professora de dança. Já estava acostumada a ficar admirando o jeito dela andar, de se dirigir às pessoas, de ensinar com leveza um novo passo de jazz. Mas então mudei de casa e fui morar em frente à casa dela. Podia vê-la sair na garupa da moto do pai, com um colant grudado no corpo e um jeans que revelava todas as curvas perfeitas que eu sonhava em ter. Minha imagem  no espelho da academia, de malha preta, baixinha, corpo quadrado e pouca graça nos movimentos, ficava cada vez mais patética em comparação à beleza e elegância da minha vizinha.

Era como se a Barbie que eu vestira durante anos da infância com vestidos rosa de baile tivesse ganhado vida. Lembrava também a personagem de um romance que eu adorava e relera à exaustão. Às vezes, tinha dificuldade em separar a Barbie, a personagem do livro (que era bailarina, algo que eu gostaria muito de ter sido) e minha vizinha bela e perfeita. 

Ela chegou a ser finalista num concurso de beleza local. Assisti ao desfile pela TV. Depois, certa manhã, quando estava indo para a aula, um grupo de rapazes mais velhos comentava sobre uma festa que aconteceria no final de semana, com entusiasmo:
"A fulana vai estar lá! Nós não podemos perder!"
Meninos iam a festas apenas para vê-la. 

Uma noite uma tia me levou a um baile e ela estava lá. Não sei como o par da moça conseguia acompanhá-la. Ela não deslizava pelo salão, ela dançava fazendo coreografias que me fariam trançar as pernas e cair no primeiro passo. Grudei os olhos nela a noite toda, como se pudesse absorver um pouco daquela habilidade e do encanto.

Um dia, ela foi embora. Diziam que iria estudar dança em alguma escola muito famosa. Imaginei-a por anos fazendo o que sempre fora meu sonho: dançar. Integrando alguma importante companhia e apresentando espetáculos pelo Brasil e pelo mundo. 

Os anos passaram; décadas, na verdade. Eu estava no cabeleireiro e abri uma revista, vendo a foto da minha antiga e bela vizinha lá dentro. Não sei se saberia quem era, caso o nome não estivesse ali. Já não era tão magra. Os cabelos agora eram castanhos, não loiros, quase da cor dos meus. E bem curtinhos. Ela não era bailarina. Era mãe de um menino e trabalhava com culinária. Não lembrava a Barbie nem a personagem querida do meu livro. Parecia bastante feliz e realizada. Uma mulher comum, assim como eu. E eu, que sempre quis ser igual a ela, agora via meu desejo realizado. 
Minha Cinderela foi desconstruída pelo tempo e pela vida.


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