Durante um bom tempo convivi com
um sentimento de inferioridade e até vergonha devido à minha profissão:
professora de escola pública. Constantemente, ao fazer compras nas lojas da
cidade, quando as vendedoras perguntavam
qual era minha ocupação, ao responder notava olhares que denunciavam seus
pensamentos: " professora, coitada!".
A figura do professor vem sendo constantemente desvalorizada e
estigmatizada pela sociedade em geral. Parece que há um consenso de que só
"vira" professor quem não teve capacidade ou oportunidade para
conseguir algo melhor.
Servem como exemplo alguns economistas
de destaque na mídia. Parece que eles têm um prazer quase que sádico em apontar
o professor (e sua eventual incompetência) como a causa maior da crise geral do
sistema educacional brasileiro. Para tanto, esmiúçam os dados, estatísticas e
porcentagens referentes à aprendizagem, alfabetização, aprovação, bem como as
classificações dos alunos brasileiros em testes nacionais e internacionais.
Esses mestres das finanças frequentemente afirmam que aumentar os salários dos
educadores (ou seja, oferecer uma remuneração digna) é uma medida que não tem
nenhum impacto na melhoria da aprendizagem dos alunos. Esses senhores
desconhecem a realidade de muitos educadores que se vêem obrigados a
complementar a renda mensal aventurando-se em atividades informais, como por
exemplo, vendendo roupas e cosméticos, ou dando aulas particulares nos finais
de semana. Ignoram que muitos de nós gostaríamos de ter condições financeiras e
tempo para comprar e ler mais livros e revistas, estudar e aprender para melhor
ensinar. No entanto, vivemos rotinas estressantes, correndo de uma escola para outra,
corrigindo trabalhos e provas em casa, acumulando dívidas e fazendo mais um
empréstimo para sair do vermelho.
Mas os economistas não estão
satisfeitos e sugerem ainda que a saída seria a meritocracia, a solução para
afastar das salas de aula os ineficientes e incompetentes, a escória
responsável pelo fracasso dos alunos. Acontece que onde os "mestres dos
números" enxergam estatísticas e porcentagens, nós, educadores, enxergamos
pessoas. Por exemplo, caso adotássemos a tal meritocracia , seria possível a
seguinte situação: ao final do ano letivo, duas turmas de 3º ano do Ensino
Fundamental são submetidas a testes de matemática. Os alunos da Fulana obtêm
média 8, enquanto que os alunos da Sicrana atingem média 6. Quem vai ser
promovida? A Fulana, visto que seus alunos tiveram um desempenho melhor. Não
importa se a Sicrana conseguiu alfabetizar, ao longo do ano letivo, duas
crianças que "patinavam" para aprender (algo que professores dos anos
anteriores não teriam conseguido). Há resistência de muitos educadores em
relação a esse sistema de avaliação: por mais que o professor seja competente,
esforçado e responsável, sempre estará sujeito a injustiças.
Portanto, o professor não pode ser
visto como único e exclusivo vilão da história. Existem sim, como também há em
muitas outras áreas e profissões, educadores relapsos, irresponsáveis e
incompetentes. Quantos casos acontecem de médicos que cometem erros graves,
resultando inclusive na morte de pacientes, quase que diariamente? Nem por isso
identificamos os médicos como responsáveis pela precária situação da saúde
pública no país. Não se pode julgar a maioria tendo como referência uma
minoria.
No entanto, como se não bastasse essa
perseguição dos economistas, os professores sofrem também (e principalmente) dentro
da escola. Há uma crise generalizada de
valores que atinge fortemente a relação professor-aluno. Crianças e jovens que
não reconhecem o sentido da educação e a própria descaracterização da função
social da escola são fatores que colocam o professor numa situação permanente
de tensão. Problemas familiares, miséria, desemprego, as drogas, gravidez
precoce, são exemplos de elementos que fazem parte do universo dos estudantes.
Uma sala de aula com trinta alunos comporta trinta histórias diferentes
(infelizmente, muitas delas são tristes, cruéis, chocantes). Anteriormente, eu
acreditava que o professor competente, que prepara uma aula interessante e com
objetivos claros, conseguia ensinar com eficiência. Hoje percebo que há momentos
nos quais o professor, por mais que tente, invente, se esforce, não tem êxito.
Nesses momentos a escola é obrigada a chamar os responsáveis pelos alunos para
tentar reverter o quadro. E aí os pais dizem: "Dá um jeito nesse menino,
que nós não podemos mais com a vida dele." Ou seja, além de ser o
responsável pela aprendizagem dos educandos, o professor passa a ter outra
função: educar, que é atribuição primordial e intransferível da família.
O professor
está sozinho na sala de aula e carrega um imenso peso nas costas: ensinar,
educar, mediar conflitos... Especialmente em grandes cidades, professores são
diariamente agredidos verbal e fisicamente (recente pesquisa, feita com mais de
100 mil professores e diretores de escola do segundo ciclo do ensino
fundamental e do ensino médio, divulgou que o Brasil está no topo do ranking de
violência contra os educadores).
Além disso,
os profissionais disputam a atenção das turmas com os celulares e tablets.
Especialistas dizem que a solução está em utilizar a tecnologia nas aulas. Mas
laboratórios de informática sucateados é o que nos oferecem, com internet que
só funciona com “reza braba”. Precisamos alfabetizar todos os alunos até os
oito anos de idade, mesmo quando as crianças demonstram dificuldades cognitivas
importantes e não recebem apoio especializado (psicólogos, psicopedagogos,
neurologistas, fonoaudiólogos). Especialistas, governantes e economistas não
sabem o que é alfabetizar um aluno do 1º ano que nunca pegou um lápis na mão,
que não teve acesso a nenhum livro durante a primeira infância, que espera com
impaciência a hora do lanche para matar a fome do dia.
Só quem é professor sabe o quanto é
difícil o cotidiano da escola pública brasileira. São profissionais que, apesar
das dificuldades, a despeito da desvalorização e humilhação quase que diárias,
continuam trabalhando porque acreditam no que fazem e se importam com os
alunos. Apesar dos ataques que sofremos, sabemos que não somos inferiores e nos
recusamos a ser tachados de ineficientes ou incompetentes. Experimentamos a
alegria de presenciar as crianças escrevendo suas primeiras palavras. Exultamos quando os pequenos abrem um livro e
sentem prazer ao ler. Nos dias frios,
tiramos os casacos do corpo para agasalhar os aluninhos que chegam à sala de
aula tremendo. Subtraímos quantias preciosas do nosso exíguo salário, seja para
comprar lápis e borracha e emprestar para os que não têm, seja para promover
uma festinha de aniversário conjunta ou realizar uma comemoração no final do
ano. Fazemos isso porque somos
educadores, trabalhamos com pessoas, não enxergamos apenas números. Ano passado
alfabetizei um menino filho de pais analfabetos. Ensinei a ele mais do que a
leitura e a escrita. Além de saber assinar seu nome e iniciar uma trajetória de
vida diferente daquela dos pais, ele aprendeu a gostar dos livros. Nos dias em
que não havia a hora da história (momento no qual leio um livro novo em voz
alta para toda a turma) ele cobrava, com aquele olhar ansioso e cheio de expectativa:
"Não vai ler livro hoje, profe?" É por ele, e por todos os alunos que
virão, que continuo sendo professora. Agora não tenho vergonha. Pelo contrário,
tenho apenas orgulho da minha profissão.