sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Aulas para "criancinhas"

Aqueles alheios ao que se passa entre as paredes de uma sala de aula são propensos a acreditar que lecionar para crianças pequenas é algo simples, tarefa que qualquer adulto alfabetizado é capaz de fazer. Tal pensamento é recorrente quando se fala das turmas de anos iniciais, onde o foco é a aprendizagem da leitura e da escrita: “para estas crianças é mole dar aula”, basta explicar o alfabeto e mostrar como "juntar sílabas". 

O que não sabem os que olham de fora da escola é que as criancinhas são cheias de dúvidas e questionamentos. Em apenas uma tarde, o professor lida com perguntas inesperadas para as quais, invariavelmente, não tem uma resposta satisfatória. Por que a lua está aparecendo no céu, se ainda é dia? Se é a cegonha que traz os bebês, por que meu irmão está dentro da barriga da minha mãe?


Às vezes, uma pergunta desencadeia diálogos assim: estava eu falando, para estudantes de sete anos de idade, sobre o dia dos povos indígenas, com todo o cuidado para não cometer erros nem repetir estereótipos. Então conto, de forma simplista e superficial- porque adulto pensa, erroneamente, que “criancinha” não consegue assimilar questões complexas- sobre como os portugueses chegaram ao Brasil e encontraram uma terra com dono. Wiliam pergunta :


-Mas nós falamos português, não é?

-Sim, é a nossa língua- confirmo.

-Então é por causa deles que falamos português.

-Sim, foi o país que colonizou o Brasil

-Então, nós somos portugueses, professora?


Explico de alguma forma rápida a questão da miscigenação entre brancos, indígenas e africanos, sem convencer. Wiliam questiona:


-Mas então nós (eu evito de explicar que, se ele fosse investigar seu DNA, provavelmente encontraria raízes indígenas em sua ancestralidade, mas apenas escuto) ficamos no lugar dos indígenas? O Brasil era deles, professora?


Faço um gesto afirmativo com a cabeça e rezo para que a criancinha não pergunte mais nada. 


Além dos questionamentos inteligentes e pertinentes, outra situação que desafia o professor de anos iniciais é o “aluno que não aprende”. Acontece sempre. Com Daniel foi assim: enquanto toda a classe se divertia na hora da leitura, lendo histórias de dragões, bruxas, fadas e animais da floresta, o menino, que não se alfabetizava de forma alguma, recorria à imaginação para transformar a borracha em carrinho e passear sobre a capa do livro que escolheu. O mistério das palavras, indecifrável para ele, já não o desafiava. Por um instante, ele quer saber o título da obra sobre a mesa. Eu leio a capa, abro a primeira página e prossigo. O enredo é muito bom, com bastante humor. Os demais colegas abandonam seus livros e passam a escutar a história que se desenrola. A turma ri, gargalha e se diverte. O carrinho de borracha fica estacionado ao lado do caderno de Daniel. Ao final, briga generalizada para ler com seus próprios olhos aquela história tão divertida. Inesperadamente, o menino que não lê pede para levar para casa o livro. Guarda-o na mochila, satisfeito. O sinal bate e encerra o dia letivo. Vou andando até o carro estacionado em frente à escola com a alma estufada, aquela sensação conhecida de que sim, aquela tarde foi importante. Aulas para criancinhas, eles pensam. Eles não sabem de nada.


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