sábado, 10 de outubro de 2020

Nas entranhas

 



Olhando para a superfície dos dias atuais, especialmente no Brasil, talvez seja difícil compreender como chegamos a este buraco civilizatório (peço licença para o pessoal do canal Meteoro ao utilizar tal expressão, brilhantemente criada por eles).No entanto, guardo na memória fragmentos de conversas, comentários ouvidos aqui e ali, que volta e meia ressurgem, como se fossem reminiscências explicativas da barbárie.

O ano era 2009. Vivíamos a epidemia de H1N1. Na escola, duas professoras evangélicas conversavam sobre uma delas ter contraído a doença e se curado rapidamente, mesmo estando grávida. A outra comentou: “você é de Deus, por isso foi curada.” Desta fala, conclui-se que, aqueles que morreram em decorrência da doença, “não eram de Deus”- por serem adeptos de outra religião (ou de nenhuma).

Em 2013, durante um encontro do Pacto Nacional para a Alfabetização na Idade Certa, vivíamos a onda de protestos contra a corrupção, iniciada pela indignação causada pelo aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus. Entre um cafezinho e uma bolachinha na hora do intervalo, os professores se reuniam, conversavam, contavam piadas. Uma professora, ao falar sobre a corrupção: “Tem que voltar a ditadura mesmo. Era tudo melhor. Tinha segurança nas ruas. Só se dava mal quem estava fazendo algo errado.” (Mais tarde, esta professora estaria usando a foto do olho choroso com bandeira do Brasil ao fundo, em suas redes sociais, e defendendo a “revolução de 1964”.)

Alguns meses depois, na reunião pedagógica de início de ano letivo, uma professora, também evangélica, diante da questão “como abordar o uso de drogas em sala de aula?”, respondeu: “Eu digo que na Bíblia está escrito que o homem reinará sobre todos os animais e todas as plantas, então, uma planta (maconha) não pode dominar as pessoas.” Uma abordagem religiosa da questão resolveria o problema das drogas, na visão da professora.

Já em 2015, diante de uma rebelião numa unidade prisional superlotada, outra professora, em outra escola, cravou: “Tem que entrar e matar tudo mesmo. São bandidos, se fossem bons, não estariam na cadeia.” Horrorizada, tentei argumentar, citando o excelente documentário “Sem pena”, que fala sobre a realidade dos presídios brasileiros, nos quais grande parte dos detentos passam anos sem julgamento, muitos deles sendo inocentes.  Não creio que a professora tenha assistido ao documentário, muito menos reavaliado seu posicionamento diante dos fatos.



Mais recentemente, em 2018, enquanto aguardava um corte de cabelo, escutei a conversa entre um cliente e o dono do salão. Falavam sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro. O cliente, branco, de classe média alta, discorria sobre o fato de os cidadãos, em sua maioria negros, pobres, moradores das comunidades, estarem sendo revistados ao sair de casa. Segundo ele, tudo certo, afinal, quem não deve, não teme, qual o problema de ser revistado e mostrar seus documentos, se não é bandido ou ladrão?

Ao rememorar essas falas, tudo fica mais claro. A fé tomando o espaço da Ciência e revelando alguns mais merecedores da vida do que outros. O fetiche pelo autoritarismo, a nostalgia em reviver uma época na qual a liberdade não existia, mas alguns tinham a sensação de que era tudo melhor, porque a imprensa era censurada e publicava receita de bolo no lugar da verdade. A sanha punitivista, o desejo de vingança e de “limpar” a sociedade, o combate à violência com a morte, o “bandido bom é bandido morto” clamado entre paredes de um espaço educativo, saindo dos lábios de uma educadora. O culto à repressão, a tentativa de minimizar a humilhação do favelado, afinal, o cliente do salão jamais será submetido ao constrangimento de uma revista diária, no seu condomínio de luxo- talvez nem mesmo “merecendo”, caso cometa um delito grave. A justiça não é cega - e enxerga especialmente a cor da pele.

Estava tudo lá, nas entranhas do pensamento do brasileiro (ou de grande parte dele). Examinemos as vísceras, para desvelar essa identidade tosca e retrógrada, que prefere armas a livros, que desdenha da Ciência, que elege a ignorância e cultua a violência, que apenas reproduz as desigualdades e preconceitos de séculos.

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