sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Enfim, a meritocracia

Quem Tira Nota Baixa é Mau Aluno?

 

Há uns dez anos, na escola em que trabalhava, havia um aluno que tocava o terror em determinada turma (sempre tem, ao menos um). Era aquele combo: rebelde, agressivo, recusava-se a fazer as atividades, só bagunçava. A professora, que já esgotara seus recursos para lidar com a situação, decidiu adotar uma estratégia inusitada: chamou o menino para uma conversa e combinaram que, se ele se comportasse durante as aulas (o desespero era tanto que nem a aprendizagem estava em jogo, o negócio era conseguir dar aula para os demais alunos), ganharia certa quantia, em dinheiro, por semana.

Acordo aceito, eis que a criatura passa as duas primeiras semanas diferente, sem aprontar, até participando das aulas. Uma tranquilidade. Mas ao final da terceira semana, o aluno pede que a professora aumente o valor pago.

Corta para alguns anos mais tarde, mesma escola. Reunião pedagógica de início de ano. Professores preocupados com o desinteresse de uma parcela considerável dos alunos. Qual estratégia adotar? Eis que surge a sugestão de uma das professoras: na escola em que trabalhou, anteriormente, os bons alunos, aqueles que aprendiam, que se esforçavam, entravam em férias vinte dias antes. Os demais, que não tinham demonstrado o “rendimento” esperado, permaneciam na escola, para “recuperar” o que não aprenderam.

Em ambos os casos, existe a ideia de premiar, seja pela mudança na conduta, seja pelo esforço e aprendizagem demonstrados. O prêmio pode vir em forma de dinheiro ou de férias antecipadas. Duas questões complicadas estão envolvidas nessa ideia de premiar alunos.

Primeiramente, o que é um bom aluno? Aquele que aprende? Que não demonstra dificuldades? Que obtém as melhores notas? Que se comporta de forma adequada? Se o bom aluno é aquele que aprende e se esforça, devemos concluir, então, que existe o mau aluno, aquele que vai aos trancos e barrancos, mesmo que seja em virtude de distúrbios ou deficiências? Vamos dizer que autistas e disléxicos são maus alunos agora, e responsabilizá-los pela não aprendizagem, eximindo o professor e a escola do seu papel?

O outro ponto é aquele que coloca a aprendizagem ou o estudo como algo chato, enfadonho, difícil, uma obrigação- nesse contexto, entendemos que é necessário premiar o aluno de alguma forma, dar um incentivo para que estude. O conhecimento deixa de ser um prazer para se tornar algo obrigatório- o qual só faz sentido se existe uma recompensa. Tenho lutado contra essa ideia no que diz respeito à atitude de alguns pais- se fizer o tema, pode usar o celular. Se passar de ano, ganha a bicicleta.

Como lidar com o mau comportamento em sala de aula - EducaBras

E eis que o governo federal, através do MEC, lança a ideia de premiar, em dinheiro, os melhores alunos e atletas de escolas públicas. Enfim, a meritocracia. E o aluno que não é bom em matemática e ciências, reprovando em tais disciplinas, mas tem um talento excepcional para desenhar, como fica? E os alunos com dificuldades de aprendizagem ou deficiências, como serão premiados? Serão considerados maus alunos, por mais que se esforcem e superem diariamente suas limitações? Discutir os modelos de ensino das escolas, metodologias, recursos, capacitação de professores, projetos inovadores- não se fala nisso.

 O discurso meritocrático está, enfim, tornando-se política pública.

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