sexta-feira, 5 de março de 2021

Lei de Deus ou Lei dos Homens?

 Foi no terceiro ultrassom que Jéssica descobriu que o feto aninhado em seu ventre não tinha cérebro. O médico virou para ela e disse: tenho uma notícia ruim para dar. Falou ainda que estava amparada por lei e poderia decidir abortar. Ela se calou até o final da consulta. Uma pedra parecia esmagar o seu peito ao sair do consultório. Não precisaria mais ir até a loja da esquina e comprar parte do enxoval. Roupas, sapatinhos, fraldas e brinquedos não seriam necessários. No dia seguinte, na igreja, o padre falou sobre as almas impedidas de nascer e como ficavam presas num lugar ainda pior que o inferno. Explicou que a alma se une ao corpo assim que a concepção acontece; sendo assim, uma mulher que aborta é uma assassina e uma herege. Se interromper a gravidez já era uma possibilidade remota, a simples visão de uma alma inocente queimando em algum lugar do além por sua culpa a fez desistir de vez de colocar um fim na gestação. 

Uma onda escura se estendeu sobre os meses seguintes. Ela se obrigava a comer e desistiu de trabalhar. Passava os dias e noites restrita à cama, levantando apenas para tomar um banho quando o marido a arrastava até o banheiro. A barriga crescia, mas ela não queria acariciá-la. Em breve, seu habitante deixaria o local quente e protegido, para apenas respirar por segundos, talvez minutos, antes de voltar à escuridão. Ela gestava a morte.

O dia do nascimento ocorreu sem alardes: nenhum enfeite na porta da maternidade, sequer um nome foi escolhido. Jéssica não quis saber se o bebê era menino ou menina. Na sala fria e asséptica, ela sequer observou a movimentação da equipe médica enquanto era anestesiada. Remexeram no seu ventre, retirando dali a criança. A ausência do choro invadia aquele lugar. A pediatra se aproximou e perguntou se queria vê-la. Movida por uma curiosidade que não desejava ter, vislumbrou o rostinho arroxeado, o nariz inchado, a total ausência de movimentos. Pediu que o vestissem com a roupa amarela e jamais tornou a ver o filho que saiu do seu ventre.

A esperança de que seu estado de humor melhorasse após o parto traumático se esvaiu em menos de uma semana. O bebê a visitava em pesadelos, cobrava o amor que não lhe deu durante a gestação, pedia que conversasse com ele. Ela passou a evitar o sono; amanhecia sentada na cama, olhando para a parede vazia em frente. E então os pesadelos invadiram a vigília, e ela já não sabia mais o que era real e o que brotava da sua imaginação. Numa tarde em que o sol esqueceu de aparecer, ela subiu ao quinto andar do prédio, fitou o horizonte cinza, escuro e triste, como sua trajetória nos últimos meses. Abriu os braços e pulou, aceitando a escuridão que agora seria eterna.

Na mesma cidade, Luana esvaziou a garrafa de vodka, que cada vez durava menos. A reportagem da TV destruiu o resquício de ânimo dos últimos dias. Era insuportável passar por aquilo sem que o álcool percorresse sua corrente sanguínea até anestesiar a consciência. Seu filho apareceu na tela, isolado, brincando com uma bola encardida no canto de uma quadra de futebol. A jornalista falava da quantidade de crianças à espera da adoção, e como os interessados em adotar tinham a preferência por bebês ou crianças de olhos e pele clara. Tudo o que seu filho, abandonado ao nascer, no hospital, não tinha.

Foi numa noite chuvosa que o estuprador a atacou na esquina, antes de chegar em casa. Era sexta e os colegas da universidade foram agitar em algum bar; ela preferia assistir TV e dormir antes da meia-noite. Mas o homem a agarrou, arrastando-a para o matagal ao lado do mercadinho do seu Rubens, tapando-lhe a boca com um trapo, até que se satisfizesse. Precisou catar os cadernos e livros na escuridão, enquanto tentava impedir que as lágrimas aflorassem, e somente em casa explodiu em soluços e num choro doído. O pai apareceu, e assim que se deu conta do que acontecera, queria sair, caçar o culpado, talvez o matasse. Jamais o encontraram, mas ele permaneceria com ela para sempre. Deixou um filho. Os colegas a convenceram a interromper a gravidez, afinal, era seu direito. Mas o pai não permitiu: segundo sua crença, aquilo aconteceu por algum motivo. Era um resgate de uma vida passada, ou o espírito da criança precisava reencarnar daquele jeito. O pai leu muitos textos que explicavam as consequências, no mundo espiritual, de interromper a gravidez.

Luana aceitou, com a condição de que colocariam o bebê para adoção, assim que ele nascesse. Não queria identificar nos traços da criança a fisionomia do estuprador, que conseguiu enxergar naquela noite de dor. Seria incapaz de amar e cuidar de alguém que a lembraria para sempre da violência sofrida. A gravidez passou devagar, e ela tentou esquecer o que aconteceu, logo após o parto. Ironias da vida fizeram com que se aproximasse de uma funcionária do abrigo para onde mandaram seu filho. E então, mesmo relutando, sentiu como se um fio invisível os ligasse: pedia fotos, vídeos e detalhes. Descobriu que a criança não atraía a atenção de possíveis adotantes. Era moreno, cabelo crespo, e também fora diagnosticado com TDAH. Passaram-se mais alguns anos. E então, naquela noite, seu filho entrou na sala, pela tela da TV. Não o queria. Por mais que sentisse uma ligação, era como ser estuprada novamente, toda vez que o enxergava. Se ela pudesse voltar atrás, teria feito outras escolhas. Ela trouxe o inferno para essa vida, e transformou a vida de uma criança inocente no inferno, lançando-a num mundo onde  só conheceria a rejeição e a indiferença. Olhou para a garrafa, vazia como ela, e desejou morrer.

As religiões foram criadas pelos homens. Bíblia, santos, escrituras, os mais diversos textos e símbolos ligados a esta ou aquela religião, surgiram pelas mentes humanas. Assim, pode-se dizer que as religiões não são a Lei de Deus, mas sim, a Lei dos Homens. Que pode ser utilizada tanto para libertar quanto para tolher. Para auxiliar e ser um instrumento de aperfeiçoamento humano, ou para gerar sofrimento e dor. Muitos foram queimados e apedrejados em nome de Deus- e continuam sendo. Mulheres sempre foram historicamente perseguidas por motivações religiosas. Quando essa lei, que se pretende divina (mas é materializada pelos homens), interfere sobre as decisões da mulher, colocando-se como pró-vida, pró-nascimento, pode acarretar situações de sofrimento e dor extremos. Neste ponto, aqueles que tão ferrenhamente defendem o direito de nascer, podem condenar as mulheres à morte- morte esta que acontece de várias formas.

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