Olhando
para a superfície dos dias atuais, especialmente no Brasil, talvez seja difícil
compreender como chegamos a este buraco civilizatório (peço licença para o
pessoal do canal Meteoro ao utilizar tal expressão, brilhantemente criada por
eles).No entanto, guardo na memória fragmentos de conversas, comentários ouvidos aqui e
ali, que volta e meia ressurgem, como se fossem reminiscências explicativas da
barbárie.
O
ano era 2009. Vivíamos a epidemia de H1N1. Na escola, duas professoras evangélicas
conversavam sobre uma delas ter contraído a doença e se curado rapidamente,
mesmo estando grávida. A outra comentou: “você é de Deus, por isso foi curada.”
Desta fala, conclui-se que, aqueles que morreram em decorrência da doença, “não
eram de Deus”- por serem adeptos de outra religião (ou de nenhuma).
Em
2013, durante um encontro do Pacto Nacional para a Alfabetização na Idade
Certa, vivíamos a onda de protestos contra a corrupção, iniciada pela
indignação causada pelo aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus.
Entre um cafezinho e uma bolachinha na hora do intervalo, os professores se
reuniam, conversavam, contavam piadas. Uma professora, ao falar sobre a
corrupção: “Tem que voltar a ditadura mesmo. Era tudo melhor. Tinha segurança
nas ruas. Só se dava mal quem estava fazendo algo errado.” (Mais tarde, esta
professora estaria usando a foto do olho choroso com bandeira do Brasil ao
fundo, em suas redes sociais, e defendendo a “revolução de 1964”.)
Alguns
meses depois, na reunião pedagógica de início de ano letivo, uma professora,
também evangélica, diante da questão “como abordar o uso de drogas em sala de
aula?”,
respondeu: “Eu digo que na Bíblia está escrito que o homem reinará sobre todos
os animais e todas as plantas, então, uma planta (maconha) não pode dominar as
pessoas.” Uma abordagem religiosa da questão resolveria o problema das drogas,
na visão da professora.
Já
em 2015, diante de uma rebelião numa unidade prisional superlotada, outra
professora, em outra escola, cravou: “Tem que entrar e matar tudo mesmo. São
bandidos, se fossem bons, não estariam na cadeia.” Horrorizada, tentei
argumentar, citando o excelente documentário “Sem pena”, que fala sobre a
realidade dos presídios brasileiros, nos quais grande parte dos detentos passam
anos sem julgamento, muitos deles sendo inocentes. Não creio que a professora tenha assistido ao
documentário, muito menos reavaliado seu posicionamento diante dos fatos.
Mais
recentemente, em 2018, enquanto aguardava um corte de cabelo, escutei a
conversa entre um cliente e o dono do salão. Falavam sobre a intervenção
militar no Rio de Janeiro. O cliente, branco, de classe média alta, discorria
sobre o fato de os cidadãos, em sua maioria negros, pobres, moradores das
comunidades, estarem sendo revistados ao sair de casa. Segundo ele, tudo certo,
afinal, quem não deve, não teme, qual o problema de ser revistado e mostrar
seus documentos, se não é bandido ou ladrão?
Ao
rememorar essas falas, tudo fica mais claro. A fé tomando o espaço da Ciência e
revelando alguns mais merecedores da vida do que outros. O fetiche pelo
autoritarismo, a nostalgia em reviver uma época na qual a liberdade não
existia, mas alguns tinham a sensação de que era tudo melhor, porque a imprensa
era censurada e publicava receita de bolo no lugar da verdade. A sanha
punitivista, o desejo de vingança e de “limpar” a sociedade, o combate à
violência com a morte, o “bandido bom é bandido morto” clamado entre paredes de
um espaço educativo, saindo dos lábios de uma educadora. O culto à repressão, a
tentativa de minimizar a humilhação do favelado, afinal, o cliente do salão
jamais será submetido ao constrangimento de uma revista diária, no seu
condomínio de luxo- talvez nem mesmo “merecendo”, caso cometa um delito grave.
A justiça não é cega - e enxerga especialmente a cor da pele.
Estava
tudo lá, nas entranhas do pensamento do brasileiro (ou de grande parte dele). Examinemos
as vísceras, para desvelar essa identidade tosca e retrógrada, que prefere
armas a livros, que desdenha da Ciência, que elege a ignorância e cultua a
violência, que apenas reproduz as desigualdades e preconceitos de séculos.