Lagoa Vermelha, 04 de julho de 2021.
Queridos e queridas,
Este é um domingo que encerrou uma semana atribulada e marcante.Muitas
pessoas foram às ruas, ontem, apesar da pandemia, para protestar contra um
governo que demonstrou toda a sua incapacidade na gestão da crise.
As palavras genocida, vacina, propina e ciência estavam nos cartazes, em faixas,
escritas nas ruas, nas camisetas… E, pela primeira vez, um grupo de
manifestantes ocupou a avenida principal da nossa cidade para demonstrar
indignação com a situação.
Ao longo de uma semana, conversamos num grupo de whatsapp, criado
especialmente para organizar a ação. Pessoas que não se conheciam pessoalmente,
outras já velhas companheiras de outras lutas, unidas em torno de um mesmo
objetivo. Havia mais, muitas mais, que não puderam participar: elas temiam
perder o emprego, não queriam decepcionar os amigos, ou clientes, ou até mesmo
evitavam conflitos familiares. Falamos sobre a bandeira, sequestrada e adotada
pela extrema-direita como seu símbolo maior; alguns participantes queriam
utilizá-la, como uma forma de resgate do símbolo que devia ser de todos, e não
de uma parcela tresloucada da população que agia como que hipnotizada (eu
diria até lobotomizada. Por favor, ao terminarem de ler essa carta, pesquisem
todos os termos que não lhes são conhecidos. Será um grande exercício de
compreensão desta época que vivi).
Houve tentativas de impedir nossa manifestação: ameaças veladas e recusas
por escrito. Alguns desistiram de participar, enquanto outros incentivavam os
mais temerosos a não retrocederem. Os experientes, forjados em outras lutas,
habituados aos ataques, resistências e afrontas, nos diziam: não podemos ter
medo, porque o medo nos enfraquece. O medo nos paralisa.
E então, apesar de todos os entraves e dificuldades, na tarde de sábado, a cidade
teve o primeiro protesto contra um governo que deliberadamente agiu para que
pessoas morressem. Eu ouvi um senhor contando como sua vida foi afetada pela
construção de uma barragem, e como foi possível reverter a situação através da
união e resistência dos moradores atingidos. Enquanto ele falava, empunhando
a bandeira de suas causas, humildemente dando seu testemunho, circulavam
caminhonetes importadas pela via, cujos ocupantes lançavam olhares e
expressões de riso e desprezo. Enquanto uma moça muito corajosa, líder de
grupos feministas, falava sobre como a fome aumentara gritantemente desde o
ano anterior, as máquinas potentes aceleravam seus motores na pista, tentando
abafar suas palavras.
Depois dos discursos, seguimos a pé pela avenida, enquanto os trabalhadores
do comércio corriam até as portas para conferir os gritos e cantos que
extravasavam um pouco da indignação, da dor e da revolta…Não recebemos
aplausos esfuziantes, pois muitos dos chefes estavam ali, atrás do balcão,
e muitos deles ainda eram admiradores do governo da morte; o máximo que
recebemos foram sinais de positivo com o dedo, feitos discretamente. Uma loja,
ao perceber nossa aproximação, fechou rapidamente as portas (sim,
provavelmente imaginaram que estaríamos dispostos a saquear ou quebrar
seu patrimônio).
Ao final, alguém disse: “esse foi o melhor dia que vivi nos últimos tempos”.
Queríamos nos abraçar, demonstrar a alegria do feito, mas não podíamos: havia
a ameaça constante e sorrateira do vírus entre nós. Nos despedimos, aos poucos,
baixando as bandeiras, enrolando os cartazes, absorvidos ainda na tentativa de
compreensão daquele sentimento novo, um sentimento de “sim, nós fizemos isso”.
Seguiram-se comentários nas redes sociais, desfazendo da ação, dizendo que
éramos poucos, que éramos vagabundos, que devíamos ter vergonha… ataques
ainda seguem, agora, no domingo à noite.
O porta-malas do meu carro está cheio de alimentos para doação, alimentos que
arrecadamos na tarde de ontem. Uma pessoa muito engajada na comunidade vai
distribuir para os mais necessitados. E fiquei sabendo, cedo, que há bairros na
cidade onde as crianças ainda andam descalças e reviram os sacos de lixo para
encontrar algo que sacie sua fome. E percebo que o porta-malas não é suficiente.
Que os pais dessas crianças provavelmente estão sem emprego e moram em
lugares onde é impossível se aquecer numa noite fria como a de hoje. E que
eles não sabem tudo o que acontece em Brasília, não acessam o jornal matinal
como eu, acompanhando as notícias sobre os cortes na educação e na saúde,
enquanto desfruto de um belo café. Talvez esses pais e mães sejam analfabetos,
ou não consigam terminar de ler uma frase e compreender seu significado.
Penso que amanhã vou para a escola e terei em minha sala de aula crianças
que estão no quarto ano e, privadas de um ensino adequado durante a pandemia,
sofrem com enormes lacunas de aprendizagem, que vão se estender ainda por
muito tempo. Todos esses pensamentos me fazem engolir em seco, porque há
mais de vinte anos participei do Censo do IBGE e conheci uma realidade que
me impactou: uma ilha de classe média, representada pela parte da cidade que
habita a região central, cercada por um mar de pobreza distribuída pelos bairros.
Da mesma forma, faz vinte anos que trabalho nas escolas e continuamos
enfrentando os mesmos problemas, agravados pela pandemia. Aliás, isso me
lembra outra história, mais antiga: quando eu era criança, devia estar no quarto
ano, certo governo estadual distribuiu um kit de material escolar, constituído de
cadernos, lápis e borracha, e eu ganhei um deles. O caderno era feito de papel
reciclado, mas parecia papel higiênico: rasgava assim que você começava a
traçar a palavra nele. O lápis quebrou a ponta na primeira forçada: jamais
consegui apontá-lo, pois a madeira era tão mole que quebrava dentro do
apontador. Restava apenas a borracha, mas não havia o que apagar. E por que
lembrei disso? Porque agora, em 2021, o governo do estado enviou máscaras
para os estudantes utilizarem...máscaras de tecido fino, com tamanho
inadequado, e elásticos frouxos. Máscaras vagabundas que denunciam o
descaso dos governantes com as pessoas. Cadernos que rasgam, lápis que
quebram, máscaras que não protegem.
Espero sinceramente que as coisas tenham mudado. Que, ao menos, o governo
do tempo de vocês escute e respeite o que os cientistas dizem. Que ele não
ataque jornalistas apenas porque estão fazendo seu trabalho. Que ele não
utilize a religião para iludir e enganar. Que ele seja justo, digno, que governe
para todos, e não para o seu cercadinho (se não sabem o que é, pesquisem
Bolsonaro cercadinho, vocês vão descobrir). Espero que a fome não esteja
mais presente, nem a escola precária, nem o desemprego e a desilusão de
viver em um país tão maltratado. Espero que a bandeira nacional e as cores
verde e amarela não sejam mais associadas a hordas de fanáticos políticos que
repetem, sem parar, eterna e previsivelmente: “vocês preferem o Lula ladrão?”;
“agora não existe mais corrupção”; “nós somos os cidadãos de bem”;
“a esquerda é vagabunda, tudo que é da esquerda não presta!”...Enfim,
espero que as pessoas do seu tempo sejam capazes de discernir entre fatos
e opiniões, que percebam que existe, sim, dignidade na política, e que não
roubar não é virtude, mas sim uma obrigação. Alguns dizem que isso se
chama utopia. Ótima palavra para pesquisar, caso não saibam o significado.
Eu digo que é sonho.