Bons escritores nos marcam para sempre. Considero um dever moral
conhecê-los, através da leitura de suas obras. Lendo “A desobediência civil”,
de Henry David Thoureau, tive a convicção de estar entrando no universo de um gênio.
Além de ser radicalmente contrário a escravidão, foi historiador e filósofo, já
em 1849 preocupava-se com os rumos do progresso e considerava lamentável os
efeitos da revolução industrial ao planeta. Sim, em pleno século XIX, era um ecologista. Aliás, o pensamento que norteia
seu livro é justamente a valorização da natureza, afirmando que a sua contemplação
levava à felicidade. Ele próprio, em idade avançada, empreendia longas
caminhadas diárias de três ou quatro horas mata adentro, tendo cuidado para
manter-se longe de estradas (sinal da civilização), das cidades e da sociedade.
Dizia que, sem isso, seus dias não tinham sentido.
Fiquei maravilhada e espantada ao conhecer tal pensamento. O que diria
Thoureau nos dias de hoje? Supondo que ele entrasse numa máquina do tempo e fosse
transportado para 2014, qual seria sua reação diante dos exemplares da
raça humana que habitam principalmente os
grandes centros urbanos? Imagino-o passeando pelos shoppings centers, redutos
da maioria dos mortais em busca do frescor do ar condicionado nos momentos de
lazer, um local artificial mas que oferece segurança e conforto. Ou ainda o
escritor presenciando a fuga em massa das grandes capitais ao aproximar-se um
feriado prolongado, homens e mulheres estressados e entediados das suas rotinas
buscando um pouco de areia e água salgada (mesmo poluída), presos por horas a
engarrafamentos torturantes para só então desfrutar de alguns momentos raros
junto à “natureza”. Ou ainda, que diria Thoreau ao saber que, para fugir do
progresso que tanto almejamos e resultou em destruição, caos, desordem e
insegurança, tivemos a brilhante ideia de construir redutos de paz,
tranquilidade e segurança, os condomínios fechados. Creio que o escritor chegaria
a conclusão que, lá em 1849, estava totalmente certo, e que a raça humana está
presa numa armadilha armada por ela mesma. Sim, pois para sentir-se seguro e
livre, o homem contemporâneo necessita habitar lugares fechados, monitorados 24 horas por dia, não
sem antes passar por uma guarita para entrar em casa. Ao visitar a
casa de um parente num desses nobres lugares, senti a artificialidade em tudo:
no lago imenso, localizado bem no centro do condomínio; no sobrado onde morava
meu familiar, espremido entre duas outras construções; mas, sobretudo, no
pequenino jardim que disputava espaço com o deck e uma modesta piscina, numa
estreita faixa de terreno. Nada mais articial. Aliás, sobre isso, Thoreau dá um
ótimo exemplo em seu livro:
“...deste pobre arremedo de Natureza e Arte que chamo de meu jardim da
frente? Ele foi feito num esforço de limpar e criar uma aparência decente
depois que o pedreiro e o carpinteiro terminaram seu serviço, embora essa
aparência se preste muito mais aos passantes do que ao morador.”
É, Thoureau descobriria que os homens modernos vivem em meio a artificialidade e estão pouco ligando para a
natureza, sua própria essência. Somos cada vez mais artificiais. Estudiosos e
filósofos questionam se um dia as máquinas tomarão o lugar dos homens. Em
grande parte, já estão tomando. Mas poderiam as máquinas se transformarem em
pessoas? Não sabemos, mas é bem possível que o contrário aconteça: nós, tão
preocupados em produzir, progredir, consumir, temos pouco espaço para a
contemplação; realizamos as tarefas diárias de forma apressada e mecânica;
dispensamos conversas olho no olho para acessar redes sociais com zilhões de
“amigos” que jamais conheceremos pessoalmente. Estamos cada vez mais mecânicos,
destituídos de emoções. Parecemos robôs. Estamos nos transformando em máquinas.
Recente pesquisa constatou que há uma relação direta entre a publicação de
imagens “selfies” e a prática sexual: quanto mais fotos o indivíduo posta nas
redes sociais, menos relações sexuais ele tem. Ora, nada mais natural e essencial aos humanos que a prática de
sexo. Já o comportamento obsessivo de ficar o dia todo preocupado em tirar
fotos (ensaiadas, resultantes de muitas
poses e filtros) nada tem de natural.
Pois bem, nosso amigo Thoreau ficaria abismado, cometeria suicídio ou
entraria apressadamente na sua máquina do tempo para fugir de toda essa
loucura. Mas imaginemos que por um acaso ele se encontrasse com outro gênio,
brasileiro, e nosso contemporâneo: Sebastião Salgado, fotógrafo incrível que
dispensa apresentações. Salgado, em seu projeto Gênesis, percorreu diversos
lugares do planeta em busca de imagens de lugares intocados, retratando a
natureza. Um fotógrafo que contempla e registra em preto e branco tudo aquilo
que Thoureau amava. Seria memorável.
Mas toda essa história é apenas um pequeno exercício de imaginação.
Viagens no tempo não são possíveis, assim como não podemos negar o progresso
humano, com todas as consequências positivas e negativas. Resta-nos buscar nos
livros e obras dos gênios e pessoas inspiradas um significado para toda essa
loucura moderna. Como diz Thoureau: “Cada manhã era um alegre convite para que
eu conferisse à minha vida a mesma simplicidade, diria até inocência, da
própria Natureza”.
E, como podemos apreciar nas belas imagens de Sebastião Salgado, também
ela, a Natureza, e não a artificialidade, é o que nos comove.