quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O celular e o mendigo






É fato que não vivemos sem a tecnologia. Para o bem e para o mal, computadores, internet, tablets e smarphones vieram para ficar. Desde o bebezinho que não completou um ano de idade até vovós de mais de setenta, todo mundo está conectado. Dificilmente você sai de casa e deixa o celular. Caso o esqueça, é desespero na certa. Em mesas de restaurantes, no metrô, na rua, na cama: a pequena tela parece hipnotizar o ser humano. 

Mas sempre há exceções. Meu filho mais velho, por exemplo. O guri tem onze anos e não tem celular. Quando falo isso pra alguém, me olham igual olhavam quando dizia que eu não tinha whatsapp (que, aliás, comecei a usar primeiramente para evitar esse tipo de reação e depois aderi pela praticidade). Num mundo no qual os pais precisam brigar para que os filhos larguem o celular, eu tento convencer o meu a ter um. Por uma questão prática: comunicação mãe e filho. E também porque imagino que o fato de não ter um celular o torne diferente demais dos colegas. Ser diferente pode ser legal, mas ser muito diferente pode ser um problema.

Acontece que nenhum argumento convence a criatura a utilizar o aparelho. Jogar? Prefere a tela maior do computador e do notebook. Redes sociais? Não tem nenhum interesse nelas. Falar com a mamãe ou os colegas? Desde muito pequeno ele tem pavor de falar ao telefone. Ora, talvez o argumento mais forte: “todo mundo tem um celular, meu filho”. “Mas eu não quero e não preciso, mãe”. Lição aprendida, e que eu já deveria saber: não precisamos ter algo só porque todo mundo tem. Não precisamos fazer algo, só porque todos fazem.

Mas não foi apenas isso que aprendi com meu filho nesses últimos tempos. Nas férias, passamos cinco dias na praia. Certa noite resolvemos ir a uma pizzaria gourmet. Sim, porque não basta apenas comer um bom pedaço de pizza, com bastante queijo e recheio e uma massa crocante. Agora tudo tem que ser gourmet. Chovia torrencialmente, como choveu na maior parte de nossa estada na praia (o que não me impediu de fotografar os raros momentos de trégua  do aguaceiro em que íamos até a beira do mar, para então postar no facebook e participar do movimento “minhas férias maravilhosas e minha vida perfeita”, embora tenhamos passado boa parte dos cinco dias trancados no quarto da pousada dormindo ou assistindo TV) e depois de encontrarmos uma vaga para estacionar, corremos até a recepção da tal pizzaria, e ao lado, num cantinho escondido e parcialmente livre da chuva, estava o mendigo. Foi tão rápido que não consegui ver detalhes, nem o rosto dele, mas ele estava lá.

 Pois bem. Entramos, fizemos nosso pedido e meu filho, o mesmo do celular, demonstrava um desconforto. Perguntei o que acontecia e ele falou sobre o homem lá fora, deitado. Aí falei que era um mendigo. Mas a mente dele estava há alguns minutos já trabalhando, imaginando: onde ele mora, o que ele faz, ele tem algo pra comer? Começou a chorar. Tentamos explicar a situação, eu, do alto do meu humanismo e engajamento, sempre escrevendo sobre as desigualdades sociais, tentando fazer com que meu filho não se preocupasse com aquele homem. Afinal, estávamos de férias e iríamos experimentar a famosa pizza vegetariana de alcachofra gourmet. Até que o menino sai com essa:

- Mãe, vocês estão vendo um mendigo, eu vejo uma pessoa.

Segunda lição: mãe, você vê um mendigo e acha normal que ele exista e viva assim. Eu vejo uma pessoa que passa frio, fome e não tem casa para morar. E isso não deveria ser visto pelos adultos como algo normal.
Bem, depois dessas duas lições, sobra um alento: se meu filho pensa e age assim, em algum momento, como mãe, eu devo ter feito algo certo...

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Adeus aos rituais






Há três décadas atrás, quem desejasse assistir a algum lançamento de Hollywood tinha muitos passos pela frente: esperar a fita chegar à locadora, o que podia levar meses ou até um ano, dependendo do filme. Depois, aguardar a sua vez para conseguir locar a fita. Ter cadastro em várias locadoras era algo comum, significava mais chances de assistir aos filmes desejados mais rápido. Também era costume, de posse da fita, reunir familiares ou amigos para assisti-la juntos. Um verdadeiro ritual que nos dias de hoje não existe. Agora, podemos ver o filme que quisermos sem enfrentar filas ou listas de espera, diretamente do You Tube ou na TV. Até mesmo aqueles filmes que não tiveram sua estreia nos cinemas do Brasil podem ser baixados (ilegalmente, claro) e assistidos. Reunir parentes e amigos para passar duas ou mais horas vendo um filme é algo raro.

Outra situação que no passado demandava uma espécie de ritual para acontecer era tirar uma foto. Comprava-se o filme, com um número limitado de poses. Não para qualquer momento, mas para momentos especiais que mereciam um registro: aniversários, casamentos ou formaturas. Antes de tirar a foto, era necessário pensar muito, analisar a iluminação, garantir que os fotografados estivessem ok, e só então dar o clic. Depois que todo o filme tivesse sido usado, era levado para o local onde seria revelado. Isso podia levar dias. E o resultado invariavelmente incluía pessoas com olhos vermelhos ou fechados, caretas, distorções e fotos literalmente perdidas. No reino atual dos smartphones, com suas memórias de armazenamento quase infinitas e aplicativos de edição de fotografias, tirar uma foto tornou-se algo banal, cotidiano.

Mas não é apenas a tecnologia a responsável por substituir ou até mesmo extinguir muitos rituais afetivos e sociais que existiam no passado. Recordo-me que quando criança uma de minhas avós fazia uma simpatia que tinha como objetivo livrar os netos dos vermes. Essa simpatia era chamada de “chumbamento de bichas”. A vovó colocava a criança sentada, cobria a mesma com um pano branco, alvíssimo, e colocava um copo cheio de água na cabeça da criatura. Aí, derretia o chumbo (não sei de que forma, nem que tipo de chumbo era, só lembro da cor cinza) e jogava dentro do copo. Fazia um barulho tremendo. E os netos morriam de medo de serem queimados. Mas isso nunca aconteceu. E assim todos acreditavam que as crianças não teriam verminoses. Hoje em dia as mães também estão certas disso, não porque as vovós continuam a benzer seus netos, mas porque as crianças tomam medicamentos de seis em seis meses para evitar o problema.

Outro ritual, esse sim, pode-se dizer, religioso, era o de enterrar os animais de estimação. Quem nunca abriu uma cova para seu falecido cachorro ou gato, com lágrimas nos olhos, ou colocou um pássaro morto numa caixinha, enterrando-o logo em seguida, geralmente no quintal de casa? Tijolos e lajes de calçada faziam as vezes de lápide, onde podia-se escrever o nome do bichinho, e talvez até improvisar uma cruz com gravetos para marcar o local. Agora, há pessoas responsáveis pelo “descarte” de animais mortos (a palavra descarte nesse caso soa fria e impessoal, pelo menos para mim), geralmente são veterinários que dispõem de um espaço específico para enterrar os animais mortos. Sem despedidas, nem reza, nem ritual.
Todas essas situações são exemplos de como estamos dando, aos poucos, adeus aos rituais.Filmes são apenas mais uma forma de divertimento fácil, rápido, mas que são assistidos, quase sempre, de forma isolada, cada qual em sua casa, com seus interesses e preferências. Quem está disposto a ficar durante duas horas junto com pai, mãe, filho, avô, tio e tia vendo a mesma história? Fotos não são mais registros únicos de momentos especiais: fotografa-se cada prato a ser ingerido, a cara do casal depois do sexo, entre outras coisas de profundo mau gosto. Aliás, há uma inversão: se no passado as pessoas viviam intensamente as situações e queriam uma lembrança através da foto, agora vamos a shows, festas, ou até “desfrutamos” as férias sem desgrudar do celular porque há uma quase obrigação de não deixar nada passar sem fotografar. O registro tornou-se mais importante do que viver e aproveitar os momentos. 

Parece que tudo ficou mais efêmero e instantâneo. As lombrigas não precisam temer o poder de chumbo das vovós. Gatos e cachorros, animais queridos e que fizeram parte da vida dos donos, são descartados sem direito a uma ave-maria sequer. O mundo vai ficando mais individualista, frio e impessoal. Sem os rituais, vai perdendo a graça. Que pena.


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