sábado, 6 de fevereiro de 2016

Adeus aos rituais






Há três décadas atrás, quem desejasse assistir a algum lançamento de Hollywood tinha muitos passos pela frente: esperar a fita chegar à locadora, o que podia levar meses ou até um ano, dependendo do filme. Depois, aguardar a sua vez para conseguir locar a fita. Ter cadastro em várias locadoras era algo comum, significava mais chances de assistir aos filmes desejados mais rápido. Também era costume, de posse da fita, reunir familiares ou amigos para assisti-la juntos. Um verdadeiro ritual que nos dias de hoje não existe. Agora, podemos ver o filme que quisermos sem enfrentar filas ou listas de espera, diretamente do You Tube ou na TV. Até mesmo aqueles filmes que não tiveram sua estreia nos cinemas do Brasil podem ser baixados (ilegalmente, claro) e assistidos. Reunir parentes e amigos para passar duas ou mais horas vendo um filme é algo raro.

Outra situação que no passado demandava uma espécie de ritual para acontecer era tirar uma foto. Comprava-se o filme, com um número limitado de poses. Não para qualquer momento, mas para momentos especiais que mereciam um registro: aniversários, casamentos ou formaturas. Antes de tirar a foto, era necessário pensar muito, analisar a iluminação, garantir que os fotografados estivessem ok, e só então dar o clic. Depois que todo o filme tivesse sido usado, era levado para o local onde seria revelado. Isso podia levar dias. E o resultado invariavelmente incluía pessoas com olhos vermelhos ou fechados, caretas, distorções e fotos literalmente perdidas. No reino atual dos smartphones, com suas memórias de armazenamento quase infinitas e aplicativos de edição de fotografias, tirar uma foto tornou-se algo banal, cotidiano.

Mas não é apenas a tecnologia a responsável por substituir ou até mesmo extinguir muitos rituais afetivos e sociais que existiam no passado. Recordo-me que quando criança uma de minhas avós fazia uma simpatia que tinha como objetivo livrar os netos dos vermes. Essa simpatia era chamada de “chumbamento de bichas”. A vovó colocava a criança sentada, cobria a mesma com um pano branco, alvíssimo, e colocava um copo cheio de água na cabeça da criatura. Aí, derretia o chumbo (não sei de que forma, nem que tipo de chumbo era, só lembro da cor cinza) e jogava dentro do copo. Fazia um barulho tremendo. E os netos morriam de medo de serem queimados. Mas isso nunca aconteceu. E assim todos acreditavam que as crianças não teriam verminoses. Hoje em dia as mães também estão certas disso, não porque as vovós continuam a benzer seus netos, mas porque as crianças tomam medicamentos de seis em seis meses para evitar o problema.

Outro ritual, esse sim, pode-se dizer, religioso, era o de enterrar os animais de estimação. Quem nunca abriu uma cova para seu falecido cachorro ou gato, com lágrimas nos olhos, ou colocou um pássaro morto numa caixinha, enterrando-o logo em seguida, geralmente no quintal de casa? Tijolos e lajes de calçada faziam as vezes de lápide, onde podia-se escrever o nome do bichinho, e talvez até improvisar uma cruz com gravetos para marcar o local. Agora, há pessoas responsáveis pelo “descarte” de animais mortos (a palavra descarte nesse caso soa fria e impessoal, pelo menos para mim), geralmente são veterinários que dispõem de um espaço específico para enterrar os animais mortos. Sem despedidas, nem reza, nem ritual.
Todas essas situações são exemplos de como estamos dando, aos poucos, adeus aos rituais.Filmes são apenas mais uma forma de divertimento fácil, rápido, mas que são assistidos, quase sempre, de forma isolada, cada qual em sua casa, com seus interesses e preferências. Quem está disposto a ficar durante duas horas junto com pai, mãe, filho, avô, tio e tia vendo a mesma história? Fotos não são mais registros únicos de momentos especiais: fotografa-se cada prato a ser ingerido, a cara do casal depois do sexo, entre outras coisas de profundo mau gosto. Aliás, há uma inversão: se no passado as pessoas viviam intensamente as situações e queriam uma lembrança através da foto, agora vamos a shows, festas, ou até “desfrutamos” as férias sem desgrudar do celular porque há uma quase obrigação de não deixar nada passar sem fotografar. O registro tornou-se mais importante do que viver e aproveitar os momentos. 

Parece que tudo ficou mais efêmero e instantâneo. As lombrigas não precisam temer o poder de chumbo das vovós. Gatos e cachorros, animais queridos e que fizeram parte da vida dos donos, são descartados sem direito a uma ave-maria sequer. O mundo vai ficando mais individualista, frio e impessoal. Sem os rituais, vai perdendo a graça. Que pena.


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