A humanidade será melhor depois da pandemia, eles disseram...
É recorrente a ideia de que, superada a pandemia de Covid-19, nos tornaremos pessoas melhores.
Imagina-se que o isolamento social e as dificuldades provocadas pela doença, de alguma forma,
constituíram experiências coletivas e individuais que, em tese, resultarão em pessoas mais
empáticas, solidárias e compreensivas.
Bem, basta ler as notícias diárias e acessar os comentários nas redes sociais para constatar que
uma pandemia não será suficiente para nos tornar melhores. Trago três exemplos aqui. O
primeiro deles: notícia sobre a inclusão de apenados nos grupos prioritários para receber a
vacina. Reação: inúmeros comentários indignados, raivosos, nos quais as pessoas afirmam ser
inaceitável que presidiários, esses demônios em forma de gente, a escória, os lixos morais,
mereçam tal tratamento. No entanto, para qualquer indivíduo com um resquício que seja de
humanidade, imunizar a população carcerária é totalmente aceitável e desejável, pois, apesar de
criminosos, eles são seres humanos. Mas este argumento não é aceito por aqueles movidos pela
sanha raivosa e vingativa. Numa discussão sobre o assunto, para não ser tachada de defensora de
bandido, utilizei outra explicação: caso aconteçam surtos nas prisões, é quase impossível
controlá-los, de seguir protocolos e evitar a contaminação em massa. Logo, os presos precisariam
de atendimento nos hospitais, e poderiam disputar um leito de UTI com nossos entes queridos.
Sim, evocar apenas direitos humanos não é suficiente neste caso. Aqueles que não enxergam
nenhuma humanidade nos presidiários talvez preferissem que todos se contaminassem e
morressem, que as cadeias se convertessem em versões modernas das câmaras de gás nazistas. E
pensar com a lógica nazista não me parece uma evolução, em qualquer aspecto.
Outra notícia: doentes do Amazonas são transferidos para hospitais do Rio Grande do Sul.
Reação: como assim? Então os governadores e prefeitos não fizeram a sua parte, e vão exportar
doentes para cá? Entre outros comentários racistas e xenofóbicos que me recuso a reproduzir
aqui. Novamente, nenhum exercício de alteridade, apenas o caldo do ódio e do preconceito sendo
engrossado.
E vamos ao último exemplo: homens pintam extintores de incêndio para vender como se fossem
cilindros de oxigênio. Aqui não temos os comentários, apenas a criatividade brasileira utilizada
da pior forma possível. Para ganhar um dinheiro fácil, exploram a dor das famílias e talvez
provoquem ainda mais mortes.
Esses três exemplos são apenas amostras do pensamento que move uma parcela significativa da
população brasileira. A pandemia só terá fim quando o senso de coletivo imperar –e ele não é
nosso forte. Vejam a quantidade de festas, comemorações, aglomerações em praias e outros
lugares, especialmente de dezembro para cá: sob o pretexto do cansaço e da manutenção da
saúde mental, um festival de desprezo, de negação, de estupidez. Isolamento e distanciamento só
funcionam se não pensarmos apenas em nós, se não priorizarmos unicamente nossas
necessidades e desejos. Vacinas só serão efetivas se a maioria do povo se vacinar. Talvez essa
postura individualista explique, em parte, o fato de o Brasil ser o pior país no enfrentamento da
doença. Além do desastre que ocupa a presidência da República, do mau exemplo que o
governante máximo do país nos dá diariamente, temos a tragédia no interior da consciência de
cada um. E, pelas amostras diárias nos jornais e redes sociais, essa tragédia continuará após a
pandemia, materializada em uma sociedade que não evoluiu moralmente.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
A humanidade será melhor depois da pandemia, eles disseram...
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021
Existências que afrontam
Os moradores de rua sempre foram um problema para a administração pública. Num passado recente, medidas como retirar os cobertores de pessoas que dormem nas calçadas ou acordá-las com jatos de água fria foram adotadas pelo governo de São Paulo. Esta semana, o chão debaixo de viadutos, que constitui a cama e o abrigo dos desassistidos, foi remodelado com pedras pontiagudas para evitar a presença dos sem-teto. Como se, retirando-os dali, o problema simplesmente desaparecesse. Está implícita a ideia, nesta ação, já manifestada por Bia Doria em entrevistas:
"Mas olha, falando dos projetos sociais, algo muito importante é assim:as pessoas que estão na rua...Não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua.Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua." (Declaração dada em Julho de 2020).
Como se dormir ao relento, exposto ao frio, chuva e calor, fosse o sonho do brasileiro. Bem, há pessoas que não só alimentam quem está na rua, mas também lutam contra as pedras dispostas sob os viadutos, para afugentar os desabrigados: o padre Júlio Lancelotti. Armado sempre com a compaixão e o altruísmo característicos de verdadeiros cristãos, o padre arrancou com marretadas as pedras, demonstrando sua indignação diante de tanta crueldade. Há quem questione a atitude dele, dizendo que ele serve a uma instituição rica e elitista, que poderia muito bem abrir as portas das igrejas para abrigar os aflitos. Polêmicas à parte, é inquestionável que o religioso vivencia sua fé, colocando em prática uma conduta genuinamente cristã.
Mas acreditar que os sem-teto moram na rua porque querem, ou porque é atrativo, não é um pensamento exclusivo de prefeitos, governadores e primeiras-damas. Costumo abordar a temática moradias com os alunos do segundo ano do Ensino Fundamental, e além dos materiais utilizados para construí-las, dos diferentes tipos de moradias em culturas diversas, falar sobre aqueles que não têm um lugar para se abrigar faz parte da minha abordagem. Gosto de utilizar o poema a seguir, de Roseana Murray:
Sem casa
Tem gente que não tem casa,
mora ao léu, debaixo da ponte.
(MURRAY, Roseana. Casas. São Paulo: Formato Editorial)
Numa atividade encaminhada de forma remota aos alunos, coloquei o poema acompanhado de uma imagem que mostrava um homem dormindo na calçada, sobre jornais. Em seguida, a criança deveria elaborar uma frase que expressasse o que ela pensava a respeito das pessoas que não tinham uma moradia e, em decorrência disso, viviam nas ruas. Uma das respostas chamou a atenção: "as pessoas moram nas ruas porque não querem obedecer às autoridades." Obviamente, tanto o vocabulário quanto a ideia implícita na explicação não são características de uma criança de oito anos de idade. Logo, algum adulto ajudou na elaboração da mesma. Essa frase sintetiza o pensamento de grande parte da população brasileira: a existência de algumas pessoas é uma afronta à ordem e a "normalidade". Os sem-teto são preguiçosos, aproveitadores e avessos à autoridade. E, caso insistam em existir, que não seja sob os viadutos, ou dormindo nas calçadas e atrapalhando a circulação das pessoas... Que existam, mas longe de nossos olhos- e de nossa cegueira moral.
Link para matéria com entrevista de Bia Doria:
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/07/03/bia-doria-diz-que-e-errado-dar-comida-a-moradores-de-rua-e-um-atrativo.htm