domingo, 19 de junho de 2022

Por que as mães choram?

 Mãe, por que você está chorando?

Foi essa a pergunta que fiz quando a minha mãe, no dia em que Tancredo Neves morreu, chorava ao colocar a mesa para o almoço. Ela apenas disse: estou triste.

Foi o mesmo que respondi ao meu filho mais novo, semana passada, ao lavar louça e ouvir a voz de Bruno Pereira, indigenista brutalmente assassinado, entoando o cântico do povo Kanamari. Por que está triste, mãe?- insistiu o guri. 

Como explicar para o seu filho que este é o sentimento constante nos últimos quatro anos, que começa assim que você abre os olhos pela manhã e lembra: Brasil, né. Moro no Brasil. E então recordo quando essa tristeza passou a pesar, cortando os dias com a faca da realidade, no exato dia em que Jair Bolsonaro passou para o segundo turno das eleições, como candidato mais votado. Até ali, embalada pela esperança do Ele Não, da mobilização das mulheres nas ruas do país (maioria eleitoral), eu acreditava que era possível acordar do pesadelo. Mas não. Naquela tarde, após o resultado das urnas, meio que anestesiada pelo impacto, pelo fato de que grande parte do povo ansiava por um líder despreparado e cruel, escolhi para assistir um filme na Netflix, extremamente doído, que contava sobre um caso real: o estupro de mulheres africanas como arma de guerra (desculpem, não lembro do título e não consegui encontrar). Lá pelo meio da história, as lágrimas vieram, se avolumaram e converteram-se num choro incontrolável. Eu queria acreditar que a tristeza era pelo filme, mas no meu íntimo sabia que o desespero era pelo que viria. Porque era claro o que estava por vir, e todo mundo minimamente consciente sabe do que estou falando. 

No entanto, jamais imaginaria que estaria chorando, quatro anos depois, por um homem de quem nunca ouvira falar (que vergonha!), que cantava, despojado de qualquer conforto, acomodado no chão da selva, um homem que era rodeado por indígenas enquanto pesquisava algo em seu notebook, seu ombro servindo de apoio para uma pequena indígena, numa demonstração de intimidade e confiança. Chorava e choro porque esse mesmo homem está morto. Morto porque pelos seus ideais totalmente contrários ao que defende o inominável da república. Morto porque acreditava que os indígenas merecem respeito e cuidado, assim como a floresta, que é a casa desses povos. Os corpos mortos e esquartejados de Dom e Bruno são a materialização cruel do ideário que tomou conta do Brasil, na onda que se diz conservadora mas não passa de fascismo embalado pelo lema "Deus Pátria Família". Quase quarenta anos depois de fazer a pergunta para minha mãe, compreendo que ela chorava porque a esperança de um país melhor morria naquela manhã. Assim como minha esperança morreu no primeiro turno de 2018, tentou ressuscitar muitas vezes nos anos que se seguiram, e quase conseguiu. Mas aí matam a voz que ecoava no coração da floresta, sepultam os sonhos, destroem as sementes de um país melhor. E as mães choram, em suas cozinhas e pias e quartos, e os filhos perguntam: por quê?

domingo, 5 de junho de 2022

A cultura coach chega à escola pública

O universo coach domina as redes sociais e faz parte da vida de muitas pessoas. Tem coach que ensina a ser magro, saudável, feliz, realizado profissionalmente... Que promete transformar a vida afetiva e sexual, renovar a autoestima e transformar a vida dos seguidores. Era evidente que, mais cedo ou mais tarde, a cultura coach, com seu discurso afinado com empreendedorismo, força de vontade e engajamento, chegaria à escola pública. O que surpreende é que tenha acontecido por vias institucionais- através de um projeto abraçado pela Secretaria de Educação do RS.

Na quarta edição do evento "Crie o impossível", cerca de 300 escolas gaúchas e mais de 10 mil alunos conheceram trajetórias inspiradoras, como por exemplo, a história da cientista Jaqueline Goés, responsável por liderar o sequenciamento do DNA do vírus da Covid 19, no Brasil. No entanto, tal exemplo, mais voltado para uma formação "tradicional" e acadêmica, ficou diluído num universo bastante diverso (diria, controverso) de "sucessos" profissionais. Influenciadores digitais, tiktokers e empreendedores foram presença maciça no evento. Bianca Rosa, mais conhecida como Boca Rosa, ex-BBB, foi exaltada como exemplo de empreendedorismo e abordou a importância do marketing para angariar seguidores. Aliás, quase que no mesmo dia circulou pelo Twitter uma imagem com uma "receita" da influencer para fazer sucesso. Um roteiro básico de como vender sua imagem no Instagram:


É curioso que a Seduc promova tal evento. Remete ao conceito da sociedade do espetáculo, criado por Guy Debord, definido como o conjunto de relações sociais mediadas pelas imagens. E é isso que os Influenciadores digitais, empreendedores e coachs  fazem. Eles pululam nas redes sociais, vendendo cursos, prometendo sucesso instantâneo e a resolução de problemas financeiros, emocionais e amorosos com fórmulas prontas- e, no mínimo, duvidosas. Talvez o maior mérito de tais profissionais esteja, justamente, em saber vender sua imagem, criar uma ilusão desejada e consumida pelo público. São mestres da aparência. No próprio portal da Seduc é possível ler: "oportunizar aos jovens o acesso a uma educação empreendedora, protagonista e empoderada." Frase tão vaga e vazia quanto os ensinamentos da cultura coach.

Enfim, depois das aprendizagens e oportunidades proporcionadas por eventos nesse formato, talvez possamos nos deparar com currículos que ensinem:

-Como aumentar suas chances de ser selecionado para o próximo BBB.

-As melhores dancinhas do TikTok para ganhar seguidores.

-Como ser um cientista sem laboratório.

- Manual para selfies engajadas e empoderadas.

-Conquiste seu primeiro milhão vendendo bolo de pote.

-Física quântica e inteligência emocional: um guia.

 Baita revolução na educação.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...