Aqueles alheios ao que se passa entre as paredes de uma sala de aula são propensos a acreditar que lecionar para crianças pequenas é algo simples, tarefa que qualquer adulto alfabetizado é capaz de fazer. Tal pensamento é recorrente quando se fala das turmas de anos iniciais, onde o foco é a aprendizagem da leitura e da escrita: “para estas crianças é mole dar aula”, basta explicar o alfabeto e mostrar como "juntar sílabas".
O que não sabem os que olham de fora da escola é que as criancinhas são cheias de dúvidas e questionamentos. Em apenas uma tarde, o professor lida com perguntas inesperadas para as quais, invariavelmente, não tem uma resposta satisfatória. Por que a lua está aparecendo no céu, se ainda é dia? Se é a cegonha que traz os bebês, por que meu irmão está dentro da barriga da minha mãe?
-Mas nós falamos português, não é?
-Sim, é a nossa língua- confirmo.
-Então é por causa deles que falamos português.
-Sim, foi o país que colonizou o Brasil
-Então, nós somos portugueses, professora?
Explico de alguma forma rápida a questão da miscigenação entre brancos, indígenas e africanos, sem convencer. Wiliam questiona:
-Mas então nós (eu evito de explicar que, se ele fosse investigar seu DNA, provavelmente encontraria raízes indígenas em sua ancestralidade, mas apenas escuto) ficamos no lugar dos indígenas? O Brasil era deles, professora?
Faço um gesto afirmativo com a cabeça e rezo para que a criancinha não pergunte mais nada.
Além dos questionamentos inteligentes e pertinentes, outra situação que desafia o professor de anos iniciais é o “aluno que não aprende”. Acontece sempre. Com Daniel foi assim: enquanto toda a classe se divertia na hora da leitura, lendo histórias de dragões, bruxas, fadas e animais da floresta, o menino, que não se alfabetizava de forma alguma, recorria à imaginação para transformar a borracha em carrinho e passear sobre a capa do livro que escolheu. O mistério das palavras, indecifrável para ele, já não o desafiava. Por um instante, ele quer saber o título da obra sobre a mesa. Eu leio a capa, abro a primeira página e prossigo. O enredo é muito bom, com bastante humor. Os demais colegas abandonam seus livros e passam a escutar a história que se desenrola. A turma ri, gargalha e se diverte. O carrinho de borracha fica estacionado ao lado do caderno de Daniel. Ao final, briga generalizada para ler com seus próprios olhos aquela história tão divertida. Inesperadamente, o menino que não lê pede para levar para casa o livro. Guarda-o na mochila, satisfeito. O sinal bate e encerra o dia letivo. Vou andando até o carro estacionado em frente à escola com a alma estufada, aquela sensação conhecida de que sim, aquela tarde foi importante. Aulas para criancinhas, eles pensam. Eles não sabem de nada.
Ótimo texto! Somente juntar sílabas....afff... como se "acuierá" as letras fosse tarefa fácil. depois que conseguem a façanha de aprender a ler, qualquer série eles seguem radiantes. Tenho profunda admiração e respeito aos professores alfabetizadores!
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