quinta-feira, 23 de julho de 2020

O país que chumba as bichas



Minha avó paterna fazia um ritual curioso para debelar as “bichas” dos netos. Bichas, na época, era o nome que os temidos vermes que acometiam o intestino das crianças recebiam. Consistia em sentar o “doente”, imóvel, numa cadeira, cobrindo-o com um pano branquíssimo (tinha que ser branco). Em seguida, a avó equilibrava na cabeça do vivente um copo cheio de água. E então vinha a parte mais perigosa: derramar chumbo derretido dentro do copo. Fazia um barulho enorme, pipocando e formando bolinhas. Nós, a turma de crianças da família, espiávamos por entre as frestas da porta, pois o “atendimento” precisava ser individual. Na primeira vez que presenciei o ritual, perguntei aos mais velhos o que era aquilo, e recebi a resposta, solene: “estão chumbando as bichas” do fulano.

O chumbamento de bichas se transformou em (um) dos meus pesadelos da infância. E se a avó derramasse aquele chumbo derretido, que devia queimar a pele, no braço ou no rosto de alguém? Eu não sabia o que fazer para que as bichas não me atacassem, então rezava para não precisar passar pela "cura" que me parecia mais perigosa que benéfica.

Até que fui salva pela professora de Ciências. Durante um bimestre, estudamos várias parasitoses, seus causadores, formas de contágio e aquela palavra nova e deliciosa: profilaxia. Bem no final de cada aula, a professora e o livro didático reforçavam como fazer para evitar tais doenças: higiene pessoal e dos alimentos, evitar andar de pés descalços, entre outras medidas simples. Ufa. O chinelo havaianas, o sabonete e uma alface bem lavada me livraram do chumbamento.

E então, quase quarenta anos depois, o benzimento da avó me vem à cabeça a cada vez que um novo e milagroso medicamento contra a COVID-19 aparece e é alardeado por pessoas que, infelizmente, parecem ter faltado às aulas básicas de Ciências. Assim como o benzimento, ouço os defensores da cloroquina e ivermectina (inclusive médicos) que dizem: mal não vai fazer, então, por que não usar, visto que não há outra alternativa?

Bem, ninguém nunca morreu por ter sido benzido com arruda e água benta. Mas pode ter deixado de fazer um tratamento crucial, para uma doença séria, acreditando numa solução mágica. Da mesma forma, se acreditamos que os medicamentos sem comprovação científica nos protegem do coronavírus, a tendência é relaxar com as medidas comprovadamente eficazes: etiqueta respiratória, higiene das mãos e distanciamento social.

Diante de uma doença nova e que tem abreviado milhares de vidas, é normal recorrer a soluções simples para problemas complexos. A atitude do presidente do Brasil funciona nessa lógica. Talvez por isso ele esteja disposto a protagonizar cenas como a do último final de semana, na qual ergueu uma caixinha do medicamento cloroquina, (assim como minha avó erguia o copo de água antes de colocar sobre a cabeça do neto), enquanto a plateia exaltava “a cura” (no caso de Bolsonaro, é muito útil alardear um remédio que faça com que a população se imagine imune, para reabrir escolas e comércios).

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Este é o resultado de um país que decidiu desvalorizar a Ciência: médicos prescrevendo remédios sem eficácia comprovada, governantes distribuindo kits deles como milagres. O desprezo pela educação causa outro efeito: uma população que acredita em qualquer informação que confirme seus desejos, sem ter o senso crítico para questionar. Assim, seremos o Brasil que chumba bichas eternamente. E que continuará a eleger vermes.

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