Minha avó paterna fazia
um ritual curioso para debelar as “bichas” dos netos. Bichas, na época, era o
nome que os temidos vermes que acometiam o intestino das crianças recebiam.
Consistia em sentar o “doente”, imóvel, numa cadeira, cobrindo-o com um pano
branquíssimo (tinha que ser branco). Em seguida, a avó equilibrava na cabeça do
vivente um copo cheio de água. E então vinha a parte mais perigosa: derramar
chumbo derretido dentro do copo. Fazia um barulho enorme, pipocando e formando
bolinhas. Nós, a turma de crianças da família, espiávamos por entre as frestas
da porta, pois o “atendimento” precisava ser individual. Na primeira vez que
presenciei o ritual, perguntei aos mais velhos o que era aquilo, e recebi a
resposta, solene: “estão chumbando as
bichas” do fulano.
O chumbamento de bichas
se transformou em (um) dos meus pesadelos da infância. E se a avó derramasse aquele
chumbo derretido, que devia queimar a pele, no braço ou no rosto de alguém?
Eu não sabia o que fazer para que as bichas não me atacassem, então rezava para
não precisar passar pela "cura" que me parecia mais perigosa que benéfica.
Até que fui salva pela
professora de Ciências. Durante um bimestre, estudamos várias parasitoses, seus
causadores, formas de contágio e aquela palavra nova e deliciosa: profilaxia. Bem
no final de cada aula, a professora e o livro didático reforçavam como fazer
para evitar tais doenças: higiene pessoal e dos alimentos, evitar andar de pés
descalços, entre outras medidas simples. Ufa. O chinelo havaianas, o sabonete e
uma alface bem lavada me livraram do chumbamento.
E então, quase quarenta
anos depois, o benzimento da avó me vem à cabeça a cada vez que um novo e
milagroso medicamento contra a COVID-19 aparece e é alardeado por pessoas que,
infelizmente, parecem ter faltado às aulas básicas de Ciências. Assim como o
benzimento, ouço os defensores da cloroquina e ivermectina (inclusive médicos)
que dizem: mal não vai fazer, então, por que não usar, visto que não há outra alternativa?
Bem, ninguém nunca
morreu por ter sido benzido com arruda e água benta. Mas pode ter deixado de
fazer um tratamento crucial, para uma doença séria, acreditando numa solução
mágica. Da mesma forma, se acreditamos que os medicamentos sem comprovação científica
nos protegem do coronavírus, a tendência é relaxar com as medidas
comprovadamente eficazes: etiqueta respiratória, higiene das mãos e
distanciamento social.
Diante de uma doença
nova e que tem abreviado milhares de vidas, é normal recorrer a soluções
simples para problemas complexos. A atitude do presidente do Brasil funciona
nessa lógica. Talvez por isso ele esteja disposto a protagonizar cenas como a
do último final de semana, na qual ergueu uma caixinha do medicamento
cloroquina, (assim como minha avó erguia o copo de água antes de colocar sobre
a cabeça do neto), enquanto a plateia exaltava “a cura” (no caso de Bolsonaro,
é muito útil alardear um remédio que faça com que a população se imagine imune, para reabrir escolas e comércios).
Este é o resultado de
um país que decidiu desvalorizar a Ciência: médicos prescrevendo remédios sem
eficácia comprovada, governantes distribuindo kits deles como milagres. O
desprezo pela educação causa outro efeito: uma população que acredita em
qualquer informação que confirme seus desejos, sem ter o senso crítico para
questionar. Assim, seremos o Brasil que chumba bichas eternamente. E que continuará a eleger vermes.
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