terça-feira, 16 de novembro de 2021

Cadeiras vazias

 



Depois de vinte meses, finalmente as cadeiras ficaram vazias. Por mais de seiscentos dias, meus dois filhos ocupavam esses lugares, divididos entre aulas online, jogos e vídeos do YouTube. Aliás, obrigada Steam, obrigada Discord. Centenas de dias de interações através de telas, enquanto eu passava de um lado para outro do apartamento, fazendo faxina, cozinhando, preparando minhas próprias aulas e, claro, acompanhando o desenrolar da pandemia pelas notícias e canais de divulgadores científicos. Enquanto isso, e principalmente lá por maio desse ano, a maioria dos colegas e amigos dos meus filhos voltavam ao propalado "novo normal": escola de forma presencial, futebol, passeios pelo centro da cidade, até mesmo algumas festinhas. Eles nunca pediram para sair; ao contrário, diziam que apenas voltariam para o "mundo exterior" quando vacinados com duas doses. 

Semana passada, quando essas cadeiras ficaram vazias, também senti um vazio enorme: foi uma convivência muito próxima, por bastante tempo. E, subitamente, eles não estavam mais ali. Mas não foi o sentimento de solidão que mais me tocou, e sim a constatação de que eles perderam muito e que não precisava ter sido assim. Até me culpei, matutando se deveria tê-los deixado vivendo como se nada acontecesse, como se a pandemia fosse algo distante e que jamais nos atingiria de maneira mais séria- como grande parte das famílias fez, desde o início. Porém, acredito que o ponto é outro: e se todos, mas todos mesmo, tivessem levado a sério o isolamento e distanciamento social lá no início de 2020, por apenas catorze dias, que é o ciclo infeccioso da doença? Com certeza, essas cadeiras teriam ficado vagas muito tempo antes. Quantas interações e experiências meus filhos deixaram de ter porque simplesmente parece que não temos quase nenhum senso de coletividade?

As notícias sobre o novo epicentro pandêmico, a Europa, nos mostram que a falta deste senso não é exclusividade do Brasil. Na Áustria, a vacinação estagnou em 60% da população e os índices de contaminação explodiram. O governo determinou, então, um lockdown para os não-vacinados. Eis que, no outro dia, formaram-se filas de pessoas em busca da vacinação. O fator que levou essas pessoas a finalmente buscarem a imunização não foi o fato de que a pandemia voltou a todo vapor por lá, lotando novamente os hospitais e interferindo na vida coletiva, mas sim uma medida que as afetou em sua individualidade. Não poderiam trabalhar, passear ou ir a lugar algum sem tomar a vacina. 

Os epidemiologistas cansaram de explicar que, numa pandemia, é preciso que existam medidas de abrangência coletiva. Isso se aplica às vacinas: só acontece uma imunização suficientemente efetiva se a grande maioria da população está vacinada. Da mesma forma, o uso de máscaras é mais eficiente se todos as utilizarem, de forma adequada, cobrindo a boca e o nariz completamente. São muitos os "ses" que aparecem quando você pensa que poderia ter sido diferente: se as pessoas não tivessem aderido ao discurso do "saúde X economia"; se a pressão por uma política de seguridade social e econômica durante o período do isolamento fosse maior sobre os governantes, no lugar dos protestos pela reabertura dos comércios; se existisse um esforço coletivo para erradicar as notícias falsas e as mentiras que circulam pelas redes sociais, levando muitos à exposição ao perigo ou a negação da vacina; se os responsáveis pelas crianças e adolescentes entendessem que, enquanto permitem que seus filhos saiam e interajam normalmente como se não houvesse amanhã, há muitos que abrem mão de satisfações e prazeres momentâneos, permanecendo em casa, porque entendem que isso é o certo a se fazer quando se vive em sociedade; se realmente existisse uma sociedade comprometida com a verdade, a saúde e o bem-estar de todos...

Talvez, na próxima pandemia. 

domingo, 4 de julho de 2021

Carta para meus descendentes

 

Lagoa Vermelha, 04 de julho de 2021.


Queridos e queridas,


Este é um domingo que encerrou uma semana atribulada e marcante.Muitas

pessoas foram às ruas, ontem, apesar da pandemia, para protestar contra um

governo que demonstrou toda a sua incapacidade na gestão da crise. 

 

As palavras genocida, vacina, propina e ciência estavam nos cartazes, em faixas, 

escritas nas ruas, nas camisetas… E, pela primeira vez, um grupo de 

manifestantes ocupou a avenida principal da nossa cidade para demonstrar

 indignação com a situação. 

 


 

Ao longo de uma semana, conversamos num grupo de whatsapp, criado 

especialmente para organizar a ação. Pessoas que não se conheciam pessoalmente,

 outras já velhas companheiras de outras lutas, unidas em torno de um mesmo 

objetivo. Havia mais, muitas mais, que não puderam participar: elas temiam

perder o emprego, não queriam decepcionar os amigos, ou clientes, ou até mesmo

evitavam conflitos familiares. Falamos sobre a bandeira, sequestrada e adotada

 pela extrema-direita como seu símbolo maior; alguns participantes queriam

 utilizá-la, como uma forma de resgate do símbolo que devia ser de todos, e não 

de uma parcela tresloucada da população que agia como que hipnotizada (eu 

diria até lobotomizada. Por favor, ao terminarem de ler essa carta, pesquisem

 todos os termos que não lhes são conhecidos. Será um grande exercício de 

compreensão desta época que vivi). 

 

Houve tentativas de impedir nossa manifestação: ameaças veladas e recusas

 por escrito. Alguns desistiram de participar, enquanto outros incentivavam os

 mais temerosos a não retrocederem. Os experientes, forjados em outras lutas, 

habituados aos ataques, resistências e afrontas, nos diziam: não podemos ter 

medo, porque o medo nos enfraquece. O medo nos paralisa.

 

E então, apesar de todos os entraves e dificuldades, na tarde de sábado, a cidade 

teve o primeiro protesto contra um governo que deliberadamente agiu para que 

pessoas morressem. Eu ouvi um senhor contando como sua vida foi afetada pela

 construção de uma barragem,  e como foi possível reverter a situação através da

 união e resistência dos moradores atingidos. Enquanto ele falava, empunhando 

a bandeira de suas causas, humildemente dando seu testemunho, circulavam 

caminhonetes importadas pela via, cujos ocupantes lançavam olhares e 

expressões de riso e desprezo. Enquanto uma moça muito corajosa, líder de 

grupos feministas, falava sobre como a fome aumentara gritantemente desde o  

ano anterior, as máquinas potentes aceleravam seus motores na pista, tentando 

abafar suas palavras. 

 

Depois dos discursos, seguimos a pé pela avenida, enquanto os trabalhadores

 do comércio corriam até as portas para conferir os gritos e cantos que 

extravasavam um pouco da indignação, da dor e da revolta…Não recebemos 

aplausos esfuziantes, pois muitos dos chefes estavam ali, atrás do balcão, 

e muitos deles ainda eram admiradores do governo da morte; o máximo que

 recebemos foram sinais de positivo com o dedo, feitos discretamente. Uma loja, 

ao perceber nossa aproximação, fechou rapidamente as portas (sim, 

provavelmente imaginaram  que estaríamos dispostos a saquear ou quebrar 

seu patrimônio). 

 

Ao final, alguém disse: “esse foi o melhor dia que vivi nos últimos tempos”. 

Queríamos nos abraçar, demonstrar a alegria do feito, mas não podíamos: havia

 a ameaça constante e sorrateira do vírus entre nós. Nos despedimos, aos poucos,

 baixando as bandeiras, enrolando os cartazes, absorvidos ainda na tentativa de

 compreensão daquele sentimento novo, um sentimento de “sim, nós fizemos isso”.

 Seguiram-se comentários nas redes sociais, desfazendo da ação, dizendo que

 éramos poucos, que éramos vagabundos, que devíamos ter vergonha… ataques

 ainda seguem, agora, no domingo à noite. 

 

O porta-malas do meu carro está cheio de alimentos para doação, alimentos que 

arrecadamos na tarde de ontem. Uma pessoa muito engajada na comunidade vai 

distribuir para os mais necessitados. E fiquei sabendo, cedo, que há bairros na 

cidade onde as crianças ainda andam descalças e reviram os sacos de lixo para 

encontrar algo que sacie sua fome. E percebo que o porta-malas não é suficiente. 

Que os pais dessas crianças provavelmente estão sem emprego e moram em

lugares onde é impossível se aquecer numa noite fria como a de hoje. E que 

eles não sabem tudo o que acontece em Brasília, não acessam o jornal matinal

 como eu, acompanhando as notícias sobre os cortes na educação e na saúde, 

enquanto desfruto de um belo café. Talvez esses pais e mães sejam analfabetos, 

ou não consigam terminar de ler uma frase e compreender seu significado. 

 

Penso que amanhã vou para a escola e terei em minha sala de aula crianças 

que estão no quarto ano e, privadas de um ensino adequado durante a pandemia,

 sofrem com enormes lacunas de aprendizagem, que vão se estender ainda por 

muito tempo. Todos esses pensamentos me fazem engolir em seco, porque há 

mais de vinte anos participei do Censo do IBGE e conheci uma realidade que

 me impactou: uma ilha de classe média, representada pela parte da cidade que

 habita a região central, cercada por um mar de pobreza distribuída pelos bairros. 

Da mesma forma, faz vinte anos que trabalho nas escolas e continuamos

 enfrentando os mesmos problemas, agravados pela pandemia. Aliás, isso me 

lembra outra história, mais antiga: quando eu era criança, devia estar no quarto 

ano, certo governo estadual distribuiu um kit de material escolar, constituído de

 cadernos, lápis e borracha, e eu ganhei um deles. O caderno era feito de papel 

reciclado, mas parecia papel higiênico: rasgava assim que você começava a 

traçar a palavra nele. O lápis quebrou a ponta na primeira forçada: jamais

 consegui apontá-lo, pois a madeira era tão mole que quebrava dentro do 

apontador. Restava apenas a borracha, mas não havia o que apagar. E por que 

lembrei disso? Porque agora, em 2021, o governo do estado enviou máscaras

 para os estudantes utilizarem...máscaras de tecido fino, com tamanho 

inadequado, e elásticos frouxos. Máscaras vagabundas que denunciam o 

descaso dos governantes com as pessoas. Cadernos que rasgam, lápis que 

quebram, máscaras que não protegem.

 

Espero sinceramente que as coisas tenham mudado. Que, ao menos, o governo 

do tempo de vocês escute e respeite o que os cientistas dizem. Que ele não

 ataque jornalistas apenas porque estão fazendo seu trabalho. Que ele não

 utilize a religião para iludir e  enganar. Que ele seja justo, digno, que governe

 para todos, e não para o seu cercadinho (se não sabem o que é, pesquisem 

Bolsonaro cercadinho, vocês vão descobrir). Espero que a fome não esteja

 mais presente, nem a escola precária, nem o desemprego e a desilusão de

 viver em um país tão maltratado. Espero que a bandeira nacional e as cores

 verde e amarela não sejam mais associadas a hordas de fanáticos políticos que 

repetem, sem parar, eterna e previsivelmente: “vocês preferem o Lula ladrão?”;

 “agora não existe mais corrupção”; “nós somos os cidadãos de bem”; 

“a esquerda é vagabunda, tudo que é da esquerda não presta!”...Enfim, 

espero que as pessoas do seu tempo sejam capazes de discernir entre fatos 

e opiniões, que percebam que existe, sim, dignidade na política, e que não

 roubar não é virtude, mas sim uma obrigação. Alguns dizem que isso se 

chama utopia. Ótima palavra para pesquisar, caso não saibam o significado. 

Eu digo que é sonho. 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Marcha, estudante!

 Eis que o tal modelo de escola cívico-militar ronda o Bolsonaristão do Sul. Assim que a possibilidade de implantação de tal modelo em uma escola da cidade surgiu, o assunto domina os meios de comunicação locais. Você é contra ou é a favor? - perguntam, para uma população que, desinformada, é seduzida a crer que escola cívico-militar equivale à escola militar.


Vamos aos esclarecimentos. As escolas militares foram criadas para atender a um público muito específico- por exemplo, familiares do pessoal das Forças Armadas, do Corpo de Bombeiros e da Polícia. Para conseguir uma vaga em uma escola militar, é necessário ser aprovado numa espécie de vestibular. Temos então: um grupo de estudantes específico, que provavelmente tem uma condição econômica confortável, e que também passa por uma seleção baseada no conhecimento. Talvez essa variável explique, em grande medida, o bom desempenho das escolas militares em avaliações de aprendizagem: elas atendem a um público seleto, e com melhores condições socioeconômicas, em comparação ao grupo de alunos que compõe as escolas públicas brasileiras "normais", nas quais as notas em avaliações, em geral, são bem menores.  Além disso, as escolas militares possuem um currículo diferenciado, com proposta pedagógica específica, elaborada pelos próprios militares.


 

E a escola cívico-militar, o que é? Ela é muitas coisas, dentre elas, uma forma de fazer propaganda de um ensino baseado na disciplina e na obediência. Nela, pretende-se colocar militares nos cargos de gestão e coordenação escolar, para, de certa forma, estruturar e administrar o colégio. Professores continuarão dando aulas, planejando e avaliando os alunos. O público desse modelo de escola continuará sendo o mesmo: crianças e adolescentes que, em grande parte, carregam um histórico de dificuldades de aprendizagem, distorção entre idade/ano frequentado, atraso escolar, pouco ou nenhum incentivo ao estudo, entre outros problemas. E então, da noite para o dia, esses alunos e alunas serão fardados, deverão manter cabelos bem aparados (meninos), ou amarrados (meninas),  e obedecerão a uma série de normas baseadas na disciplina militar. Seu aluno não sabe ler, aos dez anos de idade? Não se preocupe, ele vai aprender a cantar o hino (e, veja bem, não há nada errado em saber cantar o hino, aliás, existe até uma legislação que prevê isso nas escolas "normais". A questão é que a exaltação aos símbolos nacionais será item de destaque em tal proposta), mesmo que não saiba escrever um verso sequer do mesmo. Os adolescentes estão em plena fase de descobertas, rebeldia e contestação? Baixa a bola, rapaziada, que com os milicos não tem espaço para qualquer manifestação mais exaltada. E é exatamente neste ponto que tal modelo de ensino tende a afastar os alunos: não é qualquer criança ou adolescente que se encaixa no perfil de estudante por ele pretendido.E, quando as pessoas não se encaixam, elas tendem a desistir- traduzindo, pode haver ainda mais abandono e evasão escolar.

Infelizmente, a maioria dos pais e responsáveis pelos estudantes não tem clareza a respeito das diferenças entre os dois modelos. O que se faz é uma propaganda enganosa, anunciando uma escola exemplar, com um sistema de ensino eficiente, que resulta numa aprendizagem espetacular. O que se entrega é um Frankeinstein pedagógico. Os déficits educacionais e todos os outros problemas que desembocam na escola continuarão existindo- abafados pela pretensa disciplina e ordem impostas.


 

 Não é de surpreender que o Brasil reme na contramão. Em uma breve pesquisa, descobrimos o que as melhores escolas do mundo priorizam: estímulo à criatividade, à autonomia e ao pensamento crítico. Foco no aluno e no processo de aprendizagem. Assim como na saúde, ciência, direitos humanos, meio ambiente, nosso país segue no rumo do atraso e do equívoco. Marcha, estudante brasileiro, marcha na contramão, para encontrar um passado glorioso que nunca existiu, para fugir do que precisa ser enfrentado e modificado através de políticas públicas eficientes. Marcha, que lá vem aquela galera: da anticiência, da cloroquina e do remédio para piolho. Aí vem o pessoal da rachadinha, da máscara no queixo, da manifestação antidemocrática. O povo do trator.  Os degustadores da picanha regada a Heineken, querendo moralizar o país!


sexta-feira, 5 de março de 2021

Lei de Deus ou Lei dos Homens?

 Foi no terceiro ultrassom que Jéssica descobriu que o feto aninhado em seu ventre não tinha cérebro. O médico virou para ela e disse: tenho uma notícia ruim para dar. Falou ainda que estava amparada por lei e poderia decidir abortar. Ela se calou até o final da consulta. Uma pedra parecia esmagar o seu peito ao sair do consultório. Não precisaria mais ir até a loja da esquina e comprar parte do enxoval. Roupas, sapatinhos, fraldas e brinquedos não seriam necessários. No dia seguinte, na igreja, o padre falou sobre as almas impedidas de nascer e como ficavam presas num lugar ainda pior que o inferno. Explicou que a alma se une ao corpo assim que a concepção acontece; sendo assim, uma mulher que aborta é uma assassina e uma herege. Se interromper a gravidez já era uma possibilidade remota, a simples visão de uma alma inocente queimando em algum lugar do além por sua culpa a fez desistir de vez de colocar um fim na gestação. 

Uma onda escura se estendeu sobre os meses seguintes. Ela se obrigava a comer e desistiu de trabalhar. Passava os dias e noites restrita à cama, levantando apenas para tomar um banho quando o marido a arrastava até o banheiro. A barriga crescia, mas ela não queria acariciá-la. Em breve, seu habitante deixaria o local quente e protegido, para apenas respirar por segundos, talvez minutos, antes de voltar à escuridão. Ela gestava a morte.

O dia do nascimento ocorreu sem alardes: nenhum enfeite na porta da maternidade, sequer um nome foi escolhido. Jéssica não quis saber se o bebê era menino ou menina. Na sala fria e asséptica, ela sequer observou a movimentação da equipe médica enquanto era anestesiada. Remexeram no seu ventre, retirando dali a criança. A ausência do choro invadia aquele lugar. A pediatra se aproximou e perguntou se queria vê-la. Movida por uma curiosidade que não desejava ter, vislumbrou o rostinho arroxeado, o nariz inchado, a total ausência de movimentos. Pediu que o vestissem com a roupa amarela e jamais tornou a ver o filho que saiu do seu ventre.

A esperança de que seu estado de humor melhorasse após o parto traumático se esvaiu em menos de uma semana. O bebê a visitava em pesadelos, cobrava o amor que não lhe deu durante a gestação, pedia que conversasse com ele. Ela passou a evitar o sono; amanhecia sentada na cama, olhando para a parede vazia em frente. E então os pesadelos invadiram a vigília, e ela já não sabia mais o que era real e o que brotava da sua imaginação. Numa tarde em que o sol esqueceu de aparecer, ela subiu ao quinto andar do prédio, fitou o horizonte cinza, escuro e triste, como sua trajetória nos últimos meses. Abriu os braços e pulou, aceitando a escuridão que agora seria eterna.

Na mesma cidade, Luana esvaziou a garrafa de vodka, que cada vez durava menos. A reportagem da TV destruiu o resquício de ânimo dos últimos dias. Era insuportável passar por aquilo sem que o álcool percorresse sua corrente sanguínea até anestesiar a consciência. Seu filho apareceu na tela, isolado, brincando com uma bola encardida no canto de uma quadra de futebol. A jornalista falava da quantidade de crianças à espera da adoção, e como os interessados em adotar tinham a preferência por bebês ou crianças de olhos e pele clara. Tudo o que seu filho, abandonado ao nascer, no hospital, não tinha.

Foi numa noite chuvosa que o estuprador a atacou na esquina, antes de chegar em casa. Era sexta e os colegas da universidade foram agitar em algum bar; ela preferia assistir TV e dormir antes da meia-noite. Mas o homem a agarrou, arrastando-a para o matagal ao lado do mercadinho do seu Rubens, tapando-lhe a boca com um trapo, até que se satisfizesse. Precisou catar os cadernos e livros na escuridão, enquanto tentava impedir que as lágrimas aflorassem, e somente em casa explodiu em soluços e num choro doído. O pai apareceu, e assim que se deu conta do que acontecera, queria sair, caçar o culpado, talvez o matasse. Jamais o encontraram, mas ele permaneceria com ela para sempre. Deixou um filho. Os colegas a convenceram a interromper a gravidez, afinal, era seu direito. Mas o pai não permitiu: segundo sua crença, aquilo aconteceu por algum motivo. Era um resgate de uma vida passada, ou o espírito da criança precisava reencarnar daquele jeito. O pai leu muitos textos que explicavam as consequências, no mundo espiritual, de interromper a gravidez.

Luana aceitou, com a condição de que colocariam o bebê para adoção, assim que ele nascesse. Não queria identificar nos traços da criança a fisionomia do estuprador, que conseguiu enxergar naquela noite de dor. Seria incapaz de amar e cuidar de alguém que a lembraria para sempre da violência sofrida. A gravidez passou devagar, e ela tentou esquecer o que aconteceu, logo após o parto. Ironias da vida fizeram com que se aproximasse de uma funcionária do abrigo para onde mandaram seu filho. E então, mesmo relutando, sentiu como se um fio invisível os ligasse: pedia fotos, vídeos e detalhes. Descobriu que a criança não atraía a atenção de possíveis adotantes. Era moreno, cabelo crespo, e também fora diagnosticado com TDAH. Passaram-se mais alguns anos. E então, naquela noite, seu filho entrou na sala, pela tela da TV. Não o queria. Por mais que sentisse uma ligação, era como ser estuprada novamente, toda vez que o enxergava. Se ela pudesse voltar atrás, teria feito outras escolhas. Ela trouxe o inferno para essa vida, e transformou a vida de uma criança inocente no inferno, lançando-a num mundo onde  só conheceria a rejeição e a indiferença. Olhou para a garrafa, vazia como ela, e desejou morrer.

As religiões foram criadas pelos homens. Bíblia, santos, escrituras, os mais diversos textos e símbolos ligados a esta ou aquela religião, surgiram pelas mentes humanas. Assim, pode-se dizer que as religiões não são a Lei de Deus, mas sim, a Lei dos Homens. Que pode ser utilizada tanto para libertar quanto para tolher. Para auxiliar e ser um instrumento de aperfeiçoamento humano, ou para gerar sofrimento e dor. Muitos foram queimados e apedrejados em nome de Deus- e continuam sendo. Mulheres sempre foram historicamente perseguidas por motivações religiosas. Quando essa lei, que se pretende divina (mas é materializada pelos homens), interfere sobre as decisões da mulher, colocando-se como pró-vida, pró-nascimento, pode acarretar situações de sofrimento e dor extremos. Neste ponto, aqueles que tão ferrenhamente defendem o direito de nascer, podem condenar as mulheres à morte- morte esta que acontece de várias formas.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

A humanidade será melhor depois da pandemia, eles disseram...

 A humanidade será melhor depois da pandemia, eles disseram...

É recorrente a ideia de que, superada a pandemia de Covid-19, nos tornaremos pessoas melhores.
Imagina-se que o isolamento social e as dificuldades provocadas pela doença, de alguma forma,
constituíram experiências coletivas e individuais que, em tese, resultarão em pessoas mais
empáticas, solidárias e compreensivas.
Bem, basta ler as notícias diárias e acessar os comentários nas redes sociais para constatar que
uma pandemia não será suficiente para nos tornar melhores. Trago três exemplos aqui. O
primeiro deles: notícia sobre a inclusão de apenados nos grupos prioritários para receber a
vacina. Reação: inúmeros comentários indignados, raivosos, nos quais as pessoas afirmam ser
inaceitável que presidiários, esses demônios em forma de gente, a escória, os lixos morais,
mereçam tal tratamento. No entanto, para qualquer indivíduo com um resquício que seja de
humanidade, imunizar a população carcerária é totalmente aceitável e desejável, pois, apesar de
criminosos, eles são seres humanos. Mas este argumento não é aceito por aqueles movidos pela
sanha raivosa e vingativa. Numa discussão sobre o assunto, para não ser tachada de defensora de
bandido, utilizei outra explicação: caso aconteçam surtos nas prisões, é quase impossível
controlá-los, de seguir protocolos e evitar a contaminação em massa. Logo, os presos precisariam
de atendimento nos hospitais, e poderiam disputar um leito de UTI com nossos entes queridos.
Sim, evocar apenas direitos humanos não é suficiente neste caso. Aqueles que não enxergam
nenhuma humanidade nos presidiários talvez preferissem que todos se contaminassem e
morressem, que as cadeias se convertessem em versões modernas das câmaras de gás nazistas. E
pensar com a lógica nazista não me parece uma evolução, em qualquer aspecto.
Outra notícia: doentes do Amazonas são transferidos para hospitais do Rio Grande do Sul.
Reação: como assim? Então os governadores e prefeitos não fizeram a sua parte, e vão exportar
doentes para cá? Entre outros comentários racistas e xenofóbicos que me recuso a reproduzir
aqui. Novamente, nenhum exercício de alteridade, apenas o caldo do ódio e do preconceito sendo
engrossado.
E vamos ao último exemplo: homens pintam extintores de incêndio para vender como se fossem
cilindros de oxigênio. Aqui não temos os comentários, apenas a criatividade brasileira utilizada
da pior forma possível. Para ganhar um dinheiro fácil, exploram a dor das famílias e talvez
provoquem ainda mais mortes.
Esses três exemplos são apenas amostras do pensamento que move uma parcela significativa da
população brasileira. A pandemia só terá fim quando o senso de coletivo imperar –e ele não é
nosso forte. Vejam a quantidade de festas, comemorações, aglomerações em praias e outros
lugares, especialmente de dezembro para cá: sob o pretexto do cansaço e da manutenção da
saúde mental, um festival de desprezo, de negação, de estupidez. Isolamento e distanciamento só
funcionam se não pensarmos apenas em nós, se não priorizarmos unicamente nossas

necessidades e desejos. Vacinas só serão efetivas se a maioria do povo se vacinar. Talvez essa
postura individualista explique, em parte, o fato de o Brasil ser o pior país no enfrentamento da
doença. Além do desastre que ocupa a presidência da República, do mau exemplo que o
governante máximo do país nos dá diariamente, temos a tragédia no interior da consciência de
cada um. E, pelas amostras diárias nos jornais e redes sociais, essa tragédia continuará após a
pandemia, materializada em uma sociedade que não evoluiu moralmente.


 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Existências que afrontam

 Os moradores de rua sempre foram um problema para a administração pública. Num passado recente, medidas como retirar os cobertores de pessoas que dormem nas calçadas ou acordá-las com jatos de água fria foram adotadas pelo governo de São Paulo. Esta semana, o chão debaixo de viadutos, que constitui a cama e o abrigo dos desassistidos, foi remodelado com pedras pontiagudas para evitar a presença dos sem-teto. Como se, retirando-os dali, o problema simplesmente desaparecesse. Está implícita a ideia, nesta ação, já manifestada por Bia Doria em entrevistas:

"Mas olha, falando dos projetos sociais, algo muito importante é assim:as pessoas que estão na rua...Não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua.Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua." (Declaração dada em Julho de 2020).

Como se dormir ao relento, exposto ao frio, chuva e calor, fosse o sonho do brasileiro. Bem, há pessoas que não só alimentam quem está na rua, mas também lutam contra as pedras dispostas sob os viadutos, para afugentar os desabrigados: o padre Júlio Lancelotti. Armado sempre com a compaixão e o altruísmo característicos de verdadeiros cristãos, o padre arrancou com marretadas as pedras, demonstrando sua indignação diante de tanta crueldade. Há quem questione a atitude dele, dizendo que ele serve a uma instituição rica e elitista, que poderia muito bem abrir as portas das igrejas para abrigar os aflitos. Polêmicas à parte, é inquestionável que o religioso vivencia sua fé, colocando em prática uma conduta genuinamente cristã. 

Mas acreditar que os sem-teto moram na rua porque querem, ou porque é atrativo, não é um pensamento exclusivo de prefeitos, governadores e primeiras-damas. Costumo abordar a temática moradias com os alunos do segundo ano do Ensino Fundamental, e além dos materiais utilizados para construí-las, dos diferentes tipos de moradias em culturas diversas, falar sobre aqueles que não têm um lugar para se abrigar faz parte da minha abordagem. Gosto de utilizar o poema a seguir, de Roseana Murray:

 

Sem casa

Tem gente que não tem casa, 

mora ao léu, debaixo da ponte.

No céu a lua espia
Esse monte de gente na rua,
Como se fosse papel
Gente tem que ter onde morar,
Um canto, um quarto, uma cama
Para no fim do dia guardar o corpo
Cansado, com carinho, com cuidado,
Porque o corpo é a casa dos pensamentos.

(MURRAY, Roseana. Casas. São Paulo: Formato Editorial)

Numa atividade encaminhada de forma remota aos alunos, coloquei o poema acompanhado de uma imagem que mostrava um homem dormindo na calçada, sobre jornais. Em seguida, a criança deveria elaborar uma frase que expressasse o que ela pensava a respeito das pessoas que não tinham uma moradia e, em decorrência disso, viviam nas ruas. Uma das respostas chamou a atenção: "as pessoas moram nas ruas porque não querem obedecer às autoridades." Obviamente, tanto o vocabulário quanto a ideia implícita na explicação não são características de uma criança de oito anos de idade. Logo, algum adulto ajudou na elaboração da mesma. Essa frase sintetiza o pensamento de grande parte da população brasileira: a existência de algumas pessoas é uma afronta à ordem e a "normalidade". Os sem-teto são preguiçosos, aproveitadores e avessos à autoridade. E, caso insistam em existir, que não seja sob os viadutos, ou dormindo nas calçadas e atrapalhando a circulação das pessoas... Que existam, mas longe de nossos olhos- e de nossa cegueira moral.

Link para matéria com entrevista de Bia Doria:  

 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/07/03/bia-doria-diz-que-e-errado-dar-comida-a-moradores-de-rua-e-um-atrativo.htm

 

 

 

Mas olha, falando dos projetos sociais, algo muito importante é assim: as pessoas que estão na rua... Não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Por que a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua".... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/07/03/bia-doria-diz-que-e-errado-dar-comida-a-moradores-de-rua-e-um-atrativo.htm?cmpid=copiaecola
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