sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Bem-vinda ao Alzheimer




Pergunta:
- Em que ano estamos?
Resposta:
- 1918.
Pergunta:
- Que dia da semana é hoje?
Resposta:
- Terça.
Pergunta:
- Quem é o presidente do Brasil?
Resposta:
 - Lula.

Era uma quarta-feira, dia 16 de novembro de 2016. As perguntas foram feitas pelo psiquiatra e respondidas pela minha mãe, que tem oitenta e um anos. Diagnóstico: Alzheimer em fase inicial.

Nós, da família, já sabíamos. Mas,  como disse depois minha irmã mais velha, que foi quem acompanhou a mãe durante a consulta: "hoje eu ouvi o que não queria ouvir".



Nunca se falou tanto em Alzheimer como nos dias de hoje. A doença do esquecimento. Marcelo Rubens Paiva escreveu um livro sobre sua mãe, que sofre da doença, com o título "Ainda estou aqui". Um relato emocionante sobre como uma mulher independente, corajosa, dona de si, vai aos poucos  tendo sua memória e independência consumidas pelo mal. O filme "Para sempre Alice", baseado no livro homônimo, conta a história de uma professora universitária diagnosticada com Alzheimer precoce. Julianne Moore levou o Oscar de Melhor Atriz nesse papel.


Apesar de ser bom saber muito sobre uma doença que estamos enfrentando, ou que algum ente querido adquiriu, no caso do Alzheimer esse conhecimento prévio nos deixa ainda mais preocupados. Pois sabemos exatamente o que vai acontecer, sem ter muita perspectiva de evitar as consequências da doença.
Eu sei que, juntamente com a perda da memória, minha mãe terá sua cognição afetada. Não saberá, por exemplo, que uma chave serve para abrir uma porta ou que o creme dental é utilizado para escovar os dentes. Perderá progressivamente a capacidade de cuidar da casa, realizar tarefas simples, como vestir uma roupa adequada ao clima ou até mesmo tomar um banho. Os cuidados constantes e a vigilância serão indispensáveis.

É muito doloroso ver a pessoa que ajudou a criar os netos, que sempre tinha um biscoito, bolo ou pastel caseiro para oferecer quando a gente passava na sua casa (que administrava sozinha), que fazia compras, tornar-se refém de uma doença que não tem cura, nem mesmo perspectiva de melhora. 

No dia da consulta, era meu aniversário. Foi a primeira vez que não recebi um abraço de aniversário da minha mãe. Para ela, estávamos numa terça-feira de 1918. Com a perda progressiva da memória, doentes de Alzheimer  tornam-se incapazes de reconhecer até mesmo os rostos de familiares muito próximos. De filhas, por exemplo. Ou seja, chegará o momento que minha mãe não saberá quem eu sou.

Não queria que esse dia chegasse. Nunca.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Soltem suas cabras





O Brasil é um país que comporta muitas culturas, um caldeirão se ritmos, cores, sabores e sons. A linguagem faz parte dessa diversidade, e, nela, há as expressões ou ditos populares, que, não obstante, podem estar carregados de preconceito. Quando se fala "preto quando não suja na entrada, suja na saída", fica evidente o racismo que insiste em sobreviver em nosso meio. Há também a questão do gênero. Um provérbio é bem ilustrativo: "Segurem suas cabras que meu bode está solto".

Sendo mãe de dois meninos, um deles prestes a entrar na puberdade, refleti sobre essa ideia. Em um passado recente, mais exatamente na época em que minha mãe era jovem (lá pelos anos cinquenta), se uma moça engravidasse, mesmo que fosse do namorado ou noivo, estaria com sua reputação manchada para sempre. Muitas eram expulsas de casa e renegadas pela família. A culpa era da moça,que não foi recatada  o suficiente para resistir às tentações.  Os bodes estavam soltos, as cabras que se cuidassem. Vai ver esse ditado surgiu naquela época.

Mas, vez ou outra, ainda o escutamos. Ou, então, vivenciamos situações que demonstram que, para algumas pessoas, o que o provérbio diz vale para os dias atuais. Todos os dias, quando acesso as páginas de notícias, há algo relacionado à violência contra a mulher: abusos, estupros, feminicídios. Por trás de todo o agressor, possivelmente há uma educação machista que, mesmo na forma inocente de um ditado falado para o adolescente que começava a namorar,  afirma que o homem é o dono da mulher, é ele quem manda, e que mulheres podem ser tratadas como objetos ou propriedade. "Em briga de marido e mulher, não se mete a colher".

Para combater a violência diária e crescente da qual as mulheres são vítimas, precisamos de mães, pais, educadores e de uma sociedade em geral que repudie esse tipo de pensamento. Vamos modificar o ditado: soltem suas cabras, que nossos bodes estão sob controle. Quem sabe, assim, roupa curta e maneira de agir não constituam motivos para que as mulheres sejam estupradas. Quem sabe os maridos e namorados não as vejam como meros objetos sexuais ou propriedade deles, partindo para a violência ou até mesmo assassinando aquelas que desejam terminar relações infelizes.

Acima de tudo, não somos cabras nem bodes. Somos seres humanos e, como nos ensinaram na escola, dotados de consciência. Nós sabemos que sabemos. Essa consciência faz com que os casos de violência contra a mulher sejam ainda mais incompreensíveis. Homens não são bodes,que agem por instinto.  Também não deveriam agir apenas por impulso. Mulheres não precisam ficar presas em casa por medo de serem atacadas ou estupradas.Liberdade para as mulheres.Consciência e discernimento para os homens, começando por uma educação sem machismo. Apenas assim teremos um futuro menos violento e mais livre, para todos.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Medida provisória e neurociência



         Por meio de uma medida provisória o governo Temer decide retirar as disciplinas de Educação Física e Arte do currículo do Ensino Médio  a partir de 2017.  Muitos criticam o fato de se fazer uma mudança tão repentina sem discussão e através de uma MP. Entidades e organizações estão tomando providências para reverter o quadro. Mas o que está por trás desse ato, no ponto de vista ideológico?
        O governo apenas reafirma seu pensamento, que ficou explícito ao extinguir o Ministério da Cultura (e depois voltar atrás) de que Arte é algo desnecessário e dispensável. Supérfluo.  
       Pois bem. Essa semana uma pesquisa do Instituto Inspirare revelou que apenas um em cada dez jovens está satisfeito com o ensino e com a escola. Muitos alegam que as relações entre eles e os professores "não é legal".
        Discorrer sobre a importância do ensino da Arte para quem está convencido que isso é inócuo ou dispensável é perda de tempo. Cada um com suas convicções. No entanto, no meu trabalho em sala de aula percebo em muitas ocasiões que a Arte nos aproxima das crianças, é uma linguagem especial e beneficia principalmente aqueles alunos mais agitados, desatentos e que não têm muito interesse em aprender.
          a Educação Física é outra história. Nosso país foi sede de uma Copa do Mundo e de uma Olimpíada recentemente. Tivemos a oportunidade de conhecer histórias diversas mas que têm em comum a superação das dificuldades econômicas, sociais e pessoais através do esporte. Ficamos esperançosos (ao menos eu fiquei) de que isso servisse de recado para que nossos governantes investissem mais nos esportes, começando pelas escolas. Mas não. Isso me faz recordar a bela  trajetória de Carl Hart, neurocientista, negro, americano, autor do livro "Um preço muito alto". Carl nasceu num bairro pobre de Miami e desde cedo envolveu-se com tráfico de drogas e pequenos crimes. Mas ele era muito bom nos esportes e viu nisso uma oportunidade para um futuro diferente. Por se destacar no basquete, conseguiu bolsas de estudos e chegou ao título de PhD. Quantos Carls brasileiros existem? Quantas vidas poderiam ter sido diferentes se oportunidades fossem oferecidas em nosso País?  Quantos neurocientistas e PhDs vamos perder por causa de uma MP?
         A ideologia desse governo é retrógrada e cheira a mofo, mas sobretudo está apoiada na ideia  do "vocês vão ter que nos engolir". Sem discussão, sem colaboração da sociedade, sem debate. 

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Para os idealistas, sonhadores e loucos


 [...] recusa à ditadura dos fatos consumados e à ditadura fatalista de um presente que aparenta ser invencível, tamanhos são os obstáculos cotidianos com os quais nos deparamos. É preciso, em Educação, reinventar, em conjunto, uma ética da rebeldia, uma ética que reafirme nossa possibilidade de dizer não e que valorize a inconformidade docente
(CORTELLA, 1998, p. 156).

Eles dirão: "é muito difícil, assim é mais fácil".
E você seguirá o caminho no qual acredita.
Eles argumentarão: " você está apenas começando, logo vai mudar de opinião".
Mas  você seguirá seus ideais.
Eles continuarão: "essas inovações não deram certo, voltemos ao modelo original".
E  você continuará experimentando.
Eles falarão: "desista, ninguém antes conseguiu fazer isso".
Mas você não vai desistir antes de tentar.
Eles vão insistir: "isso é besteira".
Mas você verá tudo de outra forma. A firmeza dos seus propósitos denunciará a fragilidade dos argumentos contrários.
Eles vão dizer que tudo que você acredita e busca é impossível.
Mas você irá persistir.
Haverá momentos em que as lágrimas serão mais fortes; a dúvida, constante companhia.
E não encontrará ninguém que compreenda sua angústia.
Eles andarão em fila, anestesiados, sem enxergar à frente ou ousar olhar para os lados.
E você, não só irá recusar-se a andar em fila,  mas será o único capaz de enxergar além.
Enxergar um novo mundo possível.

 Para encerrar, trecho traduzido da música do Pearl Jam:


"Eu segurarei a vela
Até que queime meu braço
Oh, eu continuarei tomando socos
Até a vontade deles se cansar
Oh, eu encararei o sol se pondo
Até ficar cego
E eu não mudarei a direção
E eu não mudarei de ideia"


sábado, 4 de junho de 2016

O filho que eu não tive

É  a noite completa, sem choro, resmungo ou lamento.
A roupinha que não comprei, os olhos que não conheci.
Perfume que não senti, cabelos que jamais tocarei.
O brinquedo que não escolhi, risada que não escutei.
É o silêncio pesado na tarde fria.
É a dúvida, o mistério, a vontade de conhecer...
De que cores gostaria? Como seriam seus desenhos? Sua primeira palavra? Sua voz, o formato da boca...
O filho que não tive é história incompleta, destino interrompido. É a incerteza da vida.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O celular e o mendigo






É fato que não vivemos sem a tecnologia. Para o bem e para o mal, computadores, internet, tablets e smarphones vieram para ficar. Desde o bebezinho que não completou um ano de idade até vovós de mais de setenta, todo mundo está conectado. Dificilmente você sai de casa e deixa o celular. Caso o esqueça, é desespero na certa. Em mesas de restaurantes, no metrô, na rua, na cama: a pequena tela parece hipnotizar o ser humano. 

Mas sempre há exceções. Meu filho mais velho, por exemplo. O guri tem onze anos e não tem celular. Quando falo isso pra alguém, me olham igual olhavam quando dizia que eu não tinha whatsapp (que, aliás, comecei a usar primeiramente para evitar esse tipo de reação e depois aderi pela praticidade). Num mundo no qual os pais precisam brigar para que os filhos larguem o celular, eu tento convencer o meu a ter um. Por uma questão prática: comunicação mãe e filho. E também porque imagino que o fato de não ter um celular o torne diferente demais dos colegas. Ser diferente pode ser legal, mas ser muito diferente pode ser um problema.

Acontece que nenhum argumento convence a criatura a utilizar o aparelho. Jogar? Prefere a tela maior do computador e do notebook. Redes sociais? Não tem nenhum interesse nelas. Falar com a mamãe ou os colegas? Desde muito pequeno ele tem pavor de falar ao telefone. Ora, talvez o argumento mais forte: “todo mundo tem um celular, meu filho”. “Mas eu não quero e não preciso, mãe”. Lição aprendida, e que eu já deveria saber: não precisamos ter algo só porque todo mundo tem. Não precisamos fazer algo, só porque todos fazem.

Mas não foi apenas isso que aprendi com meu filho nesses últimos tempos. Nas férias, passamos cinco dias na praia. Certa noite resolvemos ir a uma pizzaria gourmet. Sim, porque não basta apenas comer um bom pedaço de pizza, com bastante queijo e recheio e uma massa crocante. Agora tudo tem que ser gourmet. Chovia torrencialmente, como choveu na maior parte de nossa estada na praia (o que não me impediu de fotografar os raros momentos de trégua  do aguaceiro em que íamos até a beira do mar, para então postar no facebook e participar do movimento “minhas férias maravilhosas e minha vida perfeita”, embora tenhamos passado boa parte dos cinco dias trancados no quarto da pousada dormindo ou assistindo TV) e depois de encontrarmos uma vaga para estacionar, corremos até a recepção da tal pizzaria, e ao lado, num cantinho escondido e parcialmente livre da chuva, estava o mendigo. Foi tão rápido que não consegui ver detalhes, nem o rosto dele, mas ele estava lá.

 Pois bem. Entramos, fizemos nosso pedido e meu filho, o mesmo do celular, demonstrava um desconforto. Perguntei o que acontecia e ele falou sobre o homem lá fora, deitado. Aí falei que era um mendigo. Mas a mente dele estava há alguns minutos já trabalhando, imaginando: onde ele mora, o que ele faz, ele tem algo pra comer? Começou a chorar. Tentamos explicar a situação, eu, do alto do meu humanismo e engajamento, sempre escrevendo sobre as desigualdades sociais, tentando fazer com que meu filho não se preocupasse com aquele homem. Afinal, estávamos de férias e iríamos experimentar a famosa pizza vegetariana de alcachofra gourmet. Até que o menino sai com essa:

- Mãe, vocês estão vendo um mendigo, eu vejo uma pessoa.

Segunda lição: mãe, você vê um mendigo e acha normal que ele exista e viva assim. Eu vejo uma pessoa que passa frio, fome e não tem casa para morar. E isso não deveria ser visto pelos adultos como algo normal.
Bem, depois dessas duas lições, sobra um alento: se meu filho pensa e age assim, em algum momento, como mãe, eu devo ter feito algo certo...
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