sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Doenças invisíveis




Todo mundo adoece, ao menos uma vez na vida. Hipertensão, diabetes, câncer, alergias... São todas doenças físicas e visíveis. No entanto, cresce de forma alarmante o número de pessoas que sofrem de outros males: as doenças psíquicas. Em 2016, 75,3 mil trabalhadores* foram afastados do trabalho em decorrência da depressão. Se consideramos  outros transtornos mentais, temos 199 mil pessoas ausentes do mercado de trabalho no mesmo ano.

As doenças ou transtornos mentais não são tão evidentes, ao menos fisicamente, para quem não está doente. Ninguém questiona um braço quebrado, uma cirurgia cardíaca ou um câncer de mama. As pessoas que necessitam se afastar de seus afazeres normais ou do trabalho em decorrência de uma depressão acabam marcadas por um estigma. "Será que está mesmo doente, ou é só frescura?" "Isso é falta de força de vontade..." " Claro que está doente, não tem fé!" É comum pensarem que, se o depressivo está fazendo compras no mercado ou postando algo nas redes sociais, não está doente de verdade.

Essa reação vem de uma ideia errônea, que está marcada no imaginário coletivo, de que a depressão real é aquela que faz com que a pessoa permaneça o dia todo deitada, sem comer, sem falar... Em muitos casos é assim, mas quando chega a esse ponto é a forma mais grave da doença. Antes, vêm a insônia, a falta de apetite, a perda da libido, a vontade de isolar-se... E muitos continuam suas rotinas normais, suportando os sintomas de um mal que, apesar de ser mental, provoca dores físicas, como enxaqueca e dor de estômago.

Costuma-se falar sobre a depressão e doenças psíquicas quando algum famoso ou pessoa  próxima comete suicídio. Temos o Setembro Amarelo, com campanhas que pretendem conscientizar sobre o problema. Isso é bom, mas o mais importante é considerar as referidas "doenças da alma" como doenças do corpo, que provocam sintomas reais, dolorosos, que exigem quase sempre tratamentos com efeitos colaterais fortes. Não adianta compartilhar mensagens e posts sobre o tema e minimizar o sofrimento do colega, do familiar, do amigo, tratando-o como bobagem, exagero, falta de fé ou de força de vontade. Afinal, as pessoas deprimidas necessitam de apoio e compreensão, não de julgamento moral.

Você não imagina o esforço que aquele teu amigo deprimido pode ter feito para levantar da cama, vestir algo, pegar as chaves, entrar no carro, dirigir até o mercado e comprar alguns itens. A dor não está apenas naquele que trata um câncer ou se recupera de uma cirurgia. As dores da alma existem. Elas doem de verdade.


*Fonte: Site Trabalho Seguro - Programa Nacional de Prevenção de Acidentes do Trabalho

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A justiça invertida



 


No ano de 1992, 111 presos foram mortos durante uma rebelião na Casa de Detenção do Carandiru, na capital paulista. Desses 111, oitenta e nove aguardavam julgamento no regime carcerário, ou seja, não eram condenados. Passados 25 anos, o cenário não mudou muito: cerca de 40% dos presos no Brasil são provisórios, segundo levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) feito em 2016. São quase 250 mil presos provisórios. Um raio X dessa situação pode ser conferido no documentário Sem pena, de Eugênio Puppo. 


Existe uma máxima que diz que todos são inocentes, até que se prove o contrário. No entanto, não só no Brasil, mas principalmente por aqui, essa máxima parece estar invertida: ninguém é inocente até que prove o contrário. Há poucos dias, o reitor da UFSC,Luiz Carlos Cancellier de Olivo, de Santa Catarina, cometeu suicídio num shopping de Florianópolis. Ele foi preso  temporariamente pela Polícia Federal, numa operação que investiga o desvio de verbas em bolsas de educação à distância. Liberado, foi afastado do cargo. Mesmo não estando preso, deveria estar se sentindo julgado e condenado pela opinião pública e humilhado pela situação,preferindo tirar a própria vida.




É fato que grande parte da sociedade acredita que quem está preso, é porque errou, é bandido, mau. É a lógica do bandido bom é bandido morto, que justifica julgamentos antecipados, presunção de culpa e linchamentos. Que destrói a vida de muitos inocentes. No livro "Infâmia", a autora Ana Maria Machado nos leva a sentir na pele todo a angústia de um funcionário público acusado injustamente de corrupção e nos mostra como pode ser verdadeiro e cruel o ditado "criou fama, deite na cama". Um exemplo de que falsas histórias podem destruir a reputação e a vida de uma pessoa.



A justiça está cada vez mais invertida: inocentes são punidos e encarcerados sem provas, enquanto que os piores ladrões e bandidos, a despeito das fartas evidências e indícios, das gravações, dos helicópteros recheados de cocaína e malas repletas de dinheiro, continuam livres.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A ração e a pirâmide





Matheus ouvia atentamente a explicação da professora. Ela era muito inteligente. Estava explicando sobre uma tal pirâmide alimentar e ia colando imagens de alimentos no cartaz fixado no quadro. O estômago do menino roncou. Pelo relógio da sala, calculou que ainda faltava mais de uma hora para a merenda. Era o terceiro dia que comiam apenas arroz no almoço. A mãe precisou usar o dinheiro do feijão para comprar as fraldas de Lucas, seu irmão mais velho, cadeirante. 

- E as frutas, onde se encaixam? - a professora continuava sua aula. 

O ronco da barriga novamente. Matheus pensou como seria bom se pudesse repetir a merenda naquele dia. Talvez conseguisse enganar a funcionária e ela não marcaria sua mão com  a canetinha que indicava que já havia sido servido uma vez. Mas os colegas o denunciariam. 

A pirâmide estava quase completa. A imagem fez o menino lembrar daquele dia em que fora até o shopping do centro, caminhando por mais de quatro horas, sem a mãe saber, é claro. Aquele lugar parecia outro mundo. Sentou numa das mesas da praça de alimentação, observando as pessoas que iam embora e deixavam seus pratos com restos de comida. Catava as batatas fritas, restos de hambúrgueres e comia, ao mesmo tempo em que guardava uma parte numa sacola plástica. Para os irmãos. Mas um dos seguranças veio até ele e começou a arrastá-lo. Uma mulher o impediu. Ela discutiu por alguns momentos com o homem e disse que pagaria um lanche para o menino. Sentaram-se lado a lado. Ela perguntou onde ele morava. Ele contou sobre sua mãe, diarista, e os três irmãos. Sobre Lucas, que agora ficava o dia todo na escola e só voltava à noitinha. A mulher chamava-se Dora e tinha um cheiro quase tão bom quanto o da professora. Lucas devorou o BigMac e Dora perguntou se ele não comeria as batatas. 


- Vou levar para dividir com meus irmãos.
Ele gostaria de levar a Coca também, mas ela já havia aberto a latinha. O menino observou os olhos da mulher encherem de lágrimas.
- Espere um pouco - disse ela, dirigindo-se até o balcão do fast food. Voltou com uma sacola cheia.
- Aqui. Leve para os seus irmãos.


O menino voltou entusiasmado para casa, pensando que logo, logo, talvez na quinta série, deixaria de estudar e arranjaria um trabalho, e então talvez pudessem ir até o shopping de vez em quando e pedir seus lanches, todos juntos.

Naquela noite, todos encheram suas barrigas, sorrindo e conversando em volta da pequena mesa do barraco de dois cômodos. Apenas a mãe estava séria. Vestia uma camiseta da eleição passada, com a foto do prefeito sorrindo.
- Nunca mais saia sozinho de casa. É muito perigoso.
- Mas, mãe...
-Sem conversa. Não faça mais isso.

A pirâmide estava pronta. Então Matheus lembrou de um alimento que não saberia classificar. Não sabia se era carboidrato ou proteína.
- Professora, e o farelo?
- Como, Matheus?
- O farelo, aquele que o prefeito distribui - falou, entre os risinhos abafados de alguns colegas.
Era o farelo que ele comia, misturado com água, que até aliviava um pouco a dor de estômago causada pela fome, mas não era gostoso. Nem bonito.
- Ah, acho que sei - falou a professora, pensando no que responder. Teve vontade de dizer ao menino que o farelo estava em outra pirâmide, a pirâmide SOCIAL dos alimentos, na qual a lagosta do prefeito estaria bem na pontinha superior, e o tal farelo, que muitos chamavam de ração, estaria na base. Mas ao mesmo tempo imaginou o Kim Kataguiri e o Alexandre Frota entrando na sala com cartazes do Escola Sem Partido e acusando-a de esquerdopata.
-Na verdade, não sei onde o farelo se encaixa nessa pirâmide, mas vou pesquisar e depois conto para vocês.
Matheus admirava muito sua professora, pois havia poucas coisas que ela não sabia, e quando não sabia, não tinha vergonha de admitir. E sempre cumpria a promessa de pesquisar e trazer a resposta.
- Agora, cada um de vocês vai montar a sua pirâmide, desenhando os alimentos que costumam ingerir diariamente.
O menino olhou para o relógio. Quase hora de comer. Desenhou arroz, feijão e uma banana na sua folha. A professora questionou, quando viu:
- Você quer colocar mais alguma coisa, Matheus?
- Não professora, é isso mesmo que eu como.
- Mas, nenhuma fruta mais, você gosta de fruta?
- Eu gosto. E de iogurte. A mãe compra, uma vez por mês, um potinho pra cada filho. Eu faço um furinho no meu pote e vou tomando um pouquinho por dia. Às vezes, dura uma semana.
A professora foi até sua mesa e retirou um embrulho da bolsa.
- Olha, eu tenho essa maçã aqui. Pode ficar com ela, tem outra lá na sala dos professores.
- Obrigado professora.
Foram interrompidos pelo sinal.
Enquanto comia, Matheus ficou pensando como classificaria cada alimento do seu prato. Ele adorava comer e aprender.

domingo, 1 de outubro de 2017

Cinderela desconstruída





Eu era apenas mais uma adolescente desengonçada, que se achava muito feia e gorda. Ela era minha vizinha. Uns dois anos mais velha, longilínea, cintura finíssima, cabelos dourados e longos e a pele que bronzeava com facilidade. Professora de dança. Já estava acostumada a ficar admirando o jeito dela andar, de se dirigir às pessoas, de ensinar com leveza um novo passo de jazz. Mas então mudei de casa e fui morar em frente à casa dela. Podia vê-la sair na garupa da moto do pai, com um colant grudado no corpo e um jeans que revelava todas as curvas perfeitas que eu sonhava em ter. Minha imagem  no espelho da academia, de malha preta, baixinha, corpo quadrado e pouca graça nos movimentos, ficava cada vez mais patética em comparação à beleza e elegância da minha vizinha.

Era como se a Barbie que eu vestira durante anos da infância com vestidos rosa de baile tivesse ganhado vida. Lembrava também a personagem de um romance que eu adorava e relera à exaustão. Às vezes, tinha dificuldade em separar a Barbie, a personagem do livro (que era bailarina, algo que eu gostaria muito de ter sido) e minha vizinha bela e perfeita. 

Ela chegou a ser finalista num concurso de beleza local. Assisti ao desfile pela TV. Depois, certa manhã, quando estava indo para a aula, um grupo de rapazes mais velhos comentava sobre uma festa que aconteceria no final de semana, com entusiasmo:
"A fulana vai estar lá! Nós não podemos perder!"
Meninos iam a festas apenas para vê-la. 

Uma noite uma tia me levou a um baile e ela estava lá. Não sei como o par da moça conseguia acompanhá-la. Ela não deslizava pelo salão, ela dançava fazendo coreografias que me fariam trançar as pernas e cair no primeiro passo. Grudei os olhos nela a noite toda, como se pudesse absorver um pouco daquela habilidade e do encanto.

Um dia, ela foi embora. Diziam que iria estudar dança em alguma escola muito famosa. Imaginei-a por anos fazendo o que sempre fora meu sonho: dançar. Integrando alguma importante companhia e apresentando espetáculos pelo Brasil e pelo mundo. 

Os anos passaram; décadas, na verdade. Eu estava no cabeleireiro e abri uma revista, vendo a foto da minha antiga e bela vizinha lá dentro. Não sei se saberia quem era, caso o nome não estivesse ali. Já não era tão magra. Os cabelos agora eram castanhos, não loiros, quase da cor dos meus. E bem curtinhos. Ela não era bailarina. Era mãe de um menino e trabalhava com culinária. Não lembrava a Barbie nem a personagem querida do meu livro. Parecia bastante feliz e realizada. Uma mulher comum, assim como eu. E eu, que sempre quis ser igual a ela, agora via meu desejo realizado. 
Minha Cinderela foi desconstruída pelo tempo e pela vida.


sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Carta aberta ao governador José Ivo Sartori





Vossa Excelência...
Sou professora nomeada da rede estadual de ensino há dezoito anos. Pedagoga, formada pela UPF. Amo minha profissão e sinto-me realizada quando estou em sala de aula com meus alunos. Adoro planejar aulas e faço isso, invariavelmente, aos finais de semana. Organizo projetos a partir das necessidades e interesses das crianças, usando muitas horas de "folga" para ler e pesquisar sobre assuntos relacionados aos referidos projetos. Não recebo nem um centavo por essas horas trabalhadas em casa. Frequentemente compro, com o dinheiro do meu salário, materiais que necessito para aulas de Arte e que não existem na escola. Também adquiro livros de literatura infantil que considero importantes e instigantes para meus alunos, usando para tanto meu vencimento mensal. Faço isso porque acredito na importância do meu ofício e sinto-me feliz realizando um trabalho de qualidade, que, creio eu, resulta em aprendizagens significativas para meus  alunos. Sou uma leitora ávida, sempre buscando novos conhecimentos, e também escrevo, tendo publicado quatro livros, dois deles relacionados à educação. Além disso, em 2015 conquistei um prêmio para educadores de relevância nacional. Apesar de todos os resultados e empenho, nunca fui promovida. Mas tudo bem. A desvalorização do professor não é mérito apenas seu, mas de uma classe política mais interessada em encher malas de dinheiro do que no progresso do país e instrução de um povo. Agora, ao entender o direito que tenho de receber meu mísero salário em dia, que não chega a dois salários mínimos,como sendo DEMAGOGIA, o senhor  fere profundamente minha dignidade enquanto pessoa. Afinal, a dignidade enquanto professora está corroída pelo seu desrespeito, pela sua prepotência e insensibilidade.
Confesso que, nas últimas eleições, cogitei votar em Vossa Excelência para o cargo que agora exerce. Sabe por quê? Porque li numa reportagem que o senhor era professor, e imaginei que teria condições de fazer um bom governo, preocupado com a educação e com nossa classe. Mas, após uma análise mais acurada, percebi que era um engodo, uma falácia, um homem despreparado e com um senso de humor brega e ridículo, mandando os professores procurarem "piso no Tumelero". Não votei no senhor. Estou sofrendo e muitos outros professores e funcionários públicos sofrem. Mas vai passar. O senhor será apenas mais uma página virada na história do Rio Grande do Sul, um governante que deixará marcas profundas na dignidade e na alma de um povo. Mas nós sobreviveremos. Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!
Alessandra Bremm
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