Acabo de ler um livro
extraordinário, daqueles que nos envolvem completamente da primeira à última
linha: “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex. Nele, conheci fatos
chocantes, terríveis, que constituíam o cotidiano de um manicômio localizado na
cidade mineira de Barbacena.
O livro surpreende primeiramente
pelo estilo narrativo. A autora, jornalista, optou por não apenas contar o que
pesquisou e presenciou, mas imprime ao texto características de romance,
reproduzindo diálogos e acontecimentos de forma criativa e emocionante (sem,
contudo, distanciar-se da veracidade). Daniela literalmente mergulhou nas
histórias de ex-pacientes do Hospital Colônia ( inaugurado em 1930 e que ainda continua parcialmente ativo) e de seus parentes, dos funcionários e
médicos que passaram pela instituição.
À medida em que folheava as páginas,
ficava ansiosa por saber mais daquelas tristes e verdadeiras histórias. Todos
nós temos uma imagem (comumente nada agradável) do que pode existir em um
manicômio, mas os exemplos citados no livro são surpreendentes. Grande parte
dos rotulados “loucos” eram apenas pessoas indesejáveis: mulheres que os
maridos não queriam mais; meninas que engravidavam e precisavam de um “destino”
anônimo; portadores de epilepsia; crianças apáticas; pessoas que haviam perdido
seus documentos; homossexuais; desajustados... Enfim, todos aqueles que, de
certa forma, incomodavam alguém.
O “tratamento” pelo qual essas
pessoas passavam está bem demonstrado no livro. Nesse ponto fica clara a comparação
ao holocausto dos judeus. A fome, pouco amenizada pela comida servida que mais
parecia lavagem para porcos; o frio, intensificado pela nudez dos internos; a
negação da identidade dos pacientes, que eram “rebatizados”pelos funcionários
com nomes fictícios e privados de sua própria história. E muitas outras
histórias chocantes que tornam a leitura do livro algo que demanda coragem.
Mais coragem ainda a autora precisou para escrevê-lo. Deixando um filho de
apenas quatro meses em casa, iniciou a investigação, pesquisando,
entrevistando, buscando informações. Antes de chegar ao livro, produziu uma
série de reportagens sobre o manicômio.
Esse livro merece ser lido por
outro aspecto: a questão da indiferença. O manicômio funcionou durante décadas,
sendo mantido pelo governo, administrado por diversos médicos, contando com a
ajuda da igreja católica, sem que houvesse um questionamento sobre os métodos
desumanos adotados no “tratamento” dos internos. A situação se perpetuou devido
à omissão daqueles que poderiam ter dado um basta ao inferno
institucionalizado. Alguns tentaram fazer isso, mas, é claro, sofreram ameaças,
retaliações e foram demitidos. A autora demonstra que, paralelamente à
indiferença da maioria das pessoas que administraram e trabalharam no local,
havia exceções. Uma funcionária comprava leite em pó utilizando seu próprio
salário e distribuía em segredo às crianças famintas. Outras, anos mais tarde,
com o movimento para o fechamento dos manicômios e transição para formas
diferentes de atendimento, optaram por morar junto aos “doidos”, nas
residências terapêuticas. Na fala dessas pessoas, que não conseguiram ficar indiferentes
à dor, à solidão e ao sofrimento alheios, uma constatação: os ditos anormais
são capazes de oferecer mais carinho, solidariedade e respeito do que muitos de
nós considerados normais.
Que contribuição um livro como esse
pode trazer para nossas vidinhas confortáveis e bem ajustadas? Por que ler
sobre algo que parece estar superado, que ficou no passado? Porque a mensagem
que fica é a de que nossa indiferença frente ao sofrimento e dor alheios pode
nos transformar em monstros, provocar ou manter tragédias, injustiças e
humilhações que deveriam ser evitadas. Enfim, uma leitura que provoca arrepios
na alma, por abordar o que o ser humano tem de pior, mas também por
lembrar-nos o que podemos ter de melhor.
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